PSICANÁLISE CONTEMPORÂNEA E A COMPREENSÃO DA DIVERSIDADE DE GÊNERO

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“Eu ando pelo mundo prestando atenção
Em cores que eu não sei o nome
Cores de Almodóvar
Cores de Frida Kahlo, cores

Passeio pelo escuro
Eu presto muita atenção no que meu irmão ouve
Como uma segunda pele, um calo, uma casca
Uma cápsula protetora” (…)

Adriana Calcanhoto

Marina da Silveira Rodrigues Almeida[1]

1. INTRODUÇÃO

A diversidade de gênero tem sido historicamente documentada em todas as culturas, com significado e interpretação sendo moldados pelas normas culturais e crenças religiosas predominantes. Em sociedades e períodos históricos específicos, as identidades de gênero podem transcender o binarismo masculino-feminino, colocando um desafio à suposta universalidade de tal classificação. Exemplos incluem, os “Hijras” na Índia, os “Kathoyes” na Tailândia, “dois espíritos” entre os nativos americanos e os chamados “Femminielli” na cultura napolitana.

A diversidade de gênero tem sido uma rica fonte de inspiração para diversas crenças culturais, mitos e expressões artísticas. O fenômeno captou a atenção de pesquisadores em múltiplas disciplinas, incluindo as esferas sociopolítica, antropológica, artística e, notadamente, os campos médico-psiquiátrico e psicológico, que se tornaram predominantes a partir do final do século XIX.

Nas últimas décadas, houve uma mudança significativa na forma como a comunidade científica e a sociedade, percebem e abordam a diversidade de gênero e, de forma mais genérica, o conceito de gênero. A partir da perspectiva patológica, que dominou o século XX, houve uma evolução gradual para uma abordagem mais complexa, que reconhece a extensa heterogeneidade nas identidades e experiências de gênero dos indivíduos.

Ao lado do quadro binário convencional, que inclui apenas categorias masculinas e femininas, há uma perspectiva crescente que vê o gênero como um espectro que engloba várias possibilidades, reconhecendo a natureza não patológica dessas variações. A proliferação de trabalhos científicos iniciados nessa época abriu novas perspectivas sobre a sexualidade, que deixaram de estar confinadas no âmbito das perspectivas religiosas e moralistas para se tornarem objeto de investigação científica e médica (Foucault, 1999).

No século XX, a perspectiva que via a diversidade de gênero como patologia, emergiu como paradigma hegemônico. Esse ponto de vista ganhou ampla aceitação na comunidade médico-científica na década de 1960, com a inclusão do diagnóstico de “travestismo nos manuais diagnósticos mais renomados mundialmente, como o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) publicado pela Associação Americana de Psiquiatria e o CID pela Organização Mundial da Saúde (APA, 2000 e 2013).

A retirada da Incongruência de Gênero (IG) dos transtornos psiquiátricos na última edição da Classificação Internacional de Doenças (CID-11, 2023), marca um avanço fundamental nessa direção. A Incongruência de Gênero refere-se a uma condição na qual o senso interno do indivíduo de seu próprio gênero não se alinha com o sexo que lhes foi atribuído no nascimento. Este termo abrange tanto indivíduos que se identificam como o gênero oposto, ou seja, pessoas transgênero binárias (indivíduos que se auto identificam como mulheres, sendo atribuído gênero masculino no nascimento; ou como homens, sendo atribuído gênero feminino no nascimento; e indivíduos que não se identificam com a construção social binária de gênero, ou seja, pessoas não-binárias), enfim, indivíduos cuja identidade de gênero não se encaixam no binarismo de gênero e que não se identificam exclusivamente como homens ou mulheres (APA, 2015).

Na literatura científica atual, o termo “transgênero” e “gênero diverso” é predominantemente empregado para pessoas que englobam todos os indivíduos, cujas identidades e expressões de gênero divergem das normas tradicionais de gênero.

Considerando que nas últimas décadas houve uma série de processos populares e progressistas na América do Sul que promoveram a ampliação de direitos (que incluíram, entre outros, o reconhecimento do casamento igualitário, leis de identidade de gênero, programas abrangentes de educação sexual e políticas públicas de saúde sexual e reprodutiva em muitos países), houve um notável retrocesso, que compromete as conquistas sociais alcançadas e a ameaça do próprio Estado democrático.

A ideologia neoliberal, com a sustentação proporcionada pelos discursos religiosos e biopolíticos, restabelece um imaginário conservador que não é alheio a certos fenômenos recentes. É nesse contexto que podemos enquadrar, tanto a autorização judicial para o tratamento psicoterápico da homossexualidade no Brasil, quanto o aumento da violência homofóbica, transfóbica, bem como dos feminicídios e dos travestis (Blestcher, 2017).

Vivemos em uma sociedade bastante conservadora e cheia de tabus e de preconceitos. O Brasil segue sendo o país que mais mata gays e transexuais no mundo. A criminalização não impediu que pessoas sigam atacando e matando pessoas transexuais, remetendo o país à beira de um grande abismo social.

O mercado de trabalho também se mostra avesso à diversidade. Não basta contratar uma pessoa LGBTQIAP+, apenas para cumprir cotas. É necessário mudar a cultura das pessoas, promover debates e permitir que elas sejam inseridas e se sintam parte do grupo. É, portanto, necessário garantir que todos tenham espaço nos ambientes sociais, de ensino e de trabalho, com efetiva igualdade de oportunidades.

O dia 28 de junho é o Dia do Orgulho LGBTQIA+, celebrado e lembrado mundialmente, e marca um episódio ocorrido em Nova Iorque em 1969. Num determinado dia, as pessoas que frequentavam o bar Stonewall Inn, em Nova York, reagiram a uma série de batidas policiais que eram realizadas ali com frequência e com muita violência. O levante contra a perseguição policial durou mais de duas noites e, no ano seguinte, resultou na organização da 1ª Parada do Orgulho.

Aliada à onda de manifestações contra a Guerra do Vietnã e por direitos civis, a mobilização confrontou a repressão e deu origem ao Dia da Libertação Gay, em 1970, conhecida como a primeira Parada do Orgulho da história. Já em 1978, na cidade do Rio de Janeiro, ocorreu a fundação do jornal “O Lampião da Esquina” no formato de tabloide, que circulou de 1978 a 1981 e foi essencial para o fortalecimento do movimento LGBTQIA+ no Brasil (Quinalha, 2022).

Na época, a sigla era GLS (gays, lésbicas e simpatizantes) surgiu, desafiando a censura, a repressão e o conservadorismo. Também em 1978, na cidade de São Paulo, foi fundado o primeiro grupo homossexual do Brasil, o “Somos”, que resultou no primeiro encontro brasileiro de homossexuais, em São Paulo, em 1980. De lá para cá, o movimento pelos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais no Brasil começou, a partir de reuniões em espaços sociais, como bares e clubes, nos anos 1970, em plena ditadura (1964-1985).

Todavia, eram nesses espaços que publicações homossexuais circulavam, servindo de referência em uma fase inicial de organização. Depois de muitas lutas do movimento LGBTQIA+, e debates e conscientização em 1999, o Conselho Federal de Psicologia proibiu o tratamento da homossexualidade como patologia, atiçando a ira de conservadores (Quinalha, 2022).

Logo em 2004, o governo lançou o programa “Brasil Sem Homofobia” e reacendeu o debate, na I Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, que aconteceu em Brasília. Dessa I Conferência, uma das deliberações foi a realização gratuita das cirurgias de readequação sexual pelo Sistema Única de Saúde, em 2008. Em 27 de março de 2008, foi criado o Coletivo de Trabalhadoras e Trabalhadores LGBT da CUT, – na época, Coletivo de Diversidade Sexual –, para atuar no sentido de difundir e agregar mais sindicatos à luta para defesa e para o apoio dessa população no mundo do trabalho em todo território nacional. Em dezembro de 2010, o Decreto n. 7.388 criou o Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBT, que conta com a participação da sociedade civil e tem como finalidade formular e propor diretrizes do processo transexualizador (Quinalha, 2022).

A III Conferência Nacional de Políticas Públicas de Direitos LGBTI+ ocorreu em 2016 e no mesmo ano foi assinado o Decreto n. 8.727, que autorizou o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de travestis e transexuais.

O ano de 2018 foi histórico para o movimento e corrobora com o Dia do Orgulho: a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a transexualidade da lista de doenças, bem como o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu que transexuais e transgêneros podem mudar seus nomes no registro civil sem ter a cirurgia de readequação sexual como pré-requisito. Em uma decisão histórica, homofobia e transfobia passaram a ser considerados crimes de racismo por decisão do STF, em 2019, ano em que ocorreu a IV Conferência Nacional de Políticas de Diretos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais (Quinalha, 2022).

O Dia do Orgulho mostra, assim, que a realidade é recheada de muitas lutas, porém, essas conquistas vieram a partir de decisões do Poder Judiciário ou do poder Executivo, e não de novas legislações propostas e aprovadas pelo Congresso Nacional, reflexo de um país conservador, que ainda registra recordes de agressões contra pessoas LGBTQIAP+ (Quinalha, 2022).

Há grande debate sobre a inclusão, ou não, de diversas outras letras que surgem, referindo-se a características mais específicas de sexualidade ou de identidade de gênero. A sigla hoje mais utilizada LGBTQIAP+ é derivada de uma escolha política, que denota coletivos com pautas organizadas e que possuem demandas específicas. Para não excluir ninguém, é sempre bom lembrar que um conjunto de letrinhas nunca será capaz de traduzir as inúmeras formas de existir e resistir fora da norma binária, cisgênero e heteronormativo (Quinalha, 2022).

Fig. 1 – O que é identidade de gênero

Fonte: Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo – Coren

Outro problema grave que devemos considerar é que ser LGBTQIAP+ seria uma opção. As pessoas nascem LGBTQIAP+. Nasce-se assim. Também se destaca a incorreta conexão de pessoas LGBTQIAP+ com as infecções sexualmente transmissíveis, a exemplo do HIV/AIDS.

O estigma e a discriminação são problemas diários destas pessoas, que ainda é considerada como “grupo de risco”. Por muitos anos, uma pessoa LGBTQIAP+ não pôde doar sangue, pois sua orientação sexual sempre foi ligada a doenças e à promiscuidade.

Os números mais recentes indicam que a transmissão do vírus do HIV não escolhe cara ou orientação. É cada vez maior o número de heterossexuais infectados. Quebrar tal estigma é essencial para promover uma educação sexual para todos, sem distinções e tabus. Isso, todavia, não descarta a necessidade de fomentar políticas públicas (Quinalha, 2022).

2. MUDANÇA DE PARADIGMA NA COMPREENSÃO DA DIVERSIDADE DE GÊNERO E PSICANÁLISE CONTEMPORÂNEA

A mudança de paradigma na compreensão da diversidade de gênero influenciou profundamente a psicanálise contemporânea, diante da necessidade de repensar e ampliar a linguagem, os significados e os conceitos tradicionalmente utilizados na teoria e na prática clínica do transgenerismo, há muito informados por uma orientação patologizante e reparadora.

À medida que as visões tradicionais que ligam gênero à anatomia sexual têm sido desafiadas e a compreensão binária de gênero tem sido questionada, a psicanálise tem desenvolvido interesse renovado sobre esse tema, cada vez mais reconhecendo o fenômeno como uma possível experiência subjetiva de gênero, em vez de apenas um sintoma ligado a origens patogênicas.

Ao distanciar-se da busca de fatores etiológicos e afastar-se de abordagens reparativas, a psicanálise contemporânea lançou luz sobre novas reflexões e questionamentos sobre a diversidade de gênero, que surgem dentro de um cenário analítico, agora livre de julgamentos predeterminados, e genuinamente focado em encorajar os indivíduos a explorarem, e expressarem autenticamente seu verdadeiro eu (Blestcher, 2017a).

Laplanche (2015) em seu último livro, “Sexual: a sexualidade ampliada no sentido freudiano”, propõe a tríade: gênero-sexo-sexual. O gênero, ordinariamente, seria duplo (masculino/feminino), mas como não sendo por natureza, então, plural; o sexo é dual; e o sexual é múltiplo, polimorfo (a grande descoberta freudiana).

Se Freud (1995) promoveu uma desconstrução da moralidade sexual cultural e estabeleceu o caráter disruptivo e desadaptativo da sexualidade humana, contestando qualquer pretensão de domesticação e regulação normatizante, chama a atenção a persistente dificuldade de certas abordagens pós-freudianas em pensar a diversidade sexual e criticar os mandatos falocêntricos e heteronormativos infiltrados em seus pressupostos.

A questão das sexualidades dissidentes acarreta um problema atual, uma vez que as transformações históricas e políticas em curso colocam em crise as narrativas tradicionais do patriarcado. Essas mutações da ordem sexual moderna continuam a fazer-se sentir no campo dos processos de produção de subjetividades sexuadas, impulsionando a proliferação de uma multiplicidade de identidades sexuais, colocações genéricas e modos de implantação de erotismos que exigem uma consideração rigorosa e desprovida de preconceitos.

Conforme Blestcher (2017) somam-se a isso, a neoparentalidade, técnicas reprodutivas avançadas que desacoplam procriação e relação genital (fecundação artificial, doação de óvulos ou espermatozoides, gestação de substituição), adoções por homossexuais, transexuais ou transgêneros e mudanças nas modalidades de parentalidade, que despertam fantasmas e acentuam os significados instituídos sobre o sistema sexo/gênero, a organização do parentesco e o significado da diferença sexual. Para a psicanálise e para os psicanalistas, esse representa ocasião propícia para estabelecer um cenário de interpelação em que nossas teorias sejam contrastadas, não apenas com a clínica, mas fundamentalmente com a metapsicologia.

Podemos entender esse obstáculo epistemológico como uma resistência da psicanálise e de certos setores do movimento psicanalítico, que responde a um movimento de fechamento equivalente a uma repressão dos processos de pensamento. Nesse sentido, Silvia Bleichmar (2014) levantou a necessidade de purificar nossos paradigmas básicos, a fim de recuperar seus núcleos mais férteis e livrar-se do lastro das dominações ideológicas do século XX que marcaram a subjetividade e a própria produção psicanalítica.

Como a sexualidade não se limita aos arranjos sociais que ditam o binômio masculino/feminino, nem à genitalidade articulada pela diferença dos sexos, examinar as desordens e aporias de nossas concepções sobre a constituição da subjetividade sexuada é uma verdadeira exigência do trabalho psicanalítico. O impacto de tal posição é, além de apenas teórico e clínico, também ético e político.

Thamy Ayouch (2016), psicanalista e professor da Universidade de Paris (Paris 7), introduz  interlocuções  frutíferas entre o corpo teórico psicanalítico contemporâneo e os estudos da filosofia, da sociologia, estudos feministas e de gênero, queer, pós-coloniais e decoloniais, entre outros, em uma tentativa de resgatar a potência subversiva da teoria e da clínica psicanalítica, frente à subjetividade dos sujeitos contemporâneos, muito diferentes dos sujeitos inscritos no contexto histórico-social onde Freud teorizou a psicanálise inicialmente.

A noção, porém, de que o espaço é uma categoria, não é preexistente à reflexão. É, ao contrário, resultado dessa reflexão: a existência de um onde em que os corpos habitam; a constatação, ou ainda, a criação do que se entende por espaço, desde as noções mais longínquas no tempo histórico, como o nascimento do território, dadas as necessidades práticas da sobrevivência e proteção, até as noções mais complexas como o espaço de representação, envolvem conjuntos de significados dos quais os espaços virtuais, inclusive, não escapam. Disso se extrai que, para o espaço ser geográfico, não pode existir por si mesmo, de forma independente, logo, o espaço geográfico é socialmente produzido.

3. CONCEITO DE HIBRIDEZ: REPOSICIONAMNETO DA PSICANÁLSE PARA COMPREENSÃO DE GÊNERO

De acordo com Ayouch (2016), o modo de produção do espaço conhecido em sociedades fixadas no modelo de gênero binário e sob organização patriarcal imposto pela colonização aos demais povos e aos pensamentos, é diferente do modo de concepção e produção do espaço entre populações em que se observa a existência da não binaridade. Assim, são distintos também os processos de concepção, produção, experimentação, modificação e reprodução do espaço dinâmico. Não se trata de pensar qual formato é melhor ou pior; mas se trata de considerar as perdas culturais significativas de percepções e práticas de mundo diversas. A noção espacial de um sujeito não binário, bem como sua atuação sobre o espaço, em cada contexto, é uma noção distinta e única frente aos demais gêneros.

Ayouch (2015), ao se apoiar em autores como Lacan, Laplanche, Foucault, Deleuze, Guattari, Butler e muitos outros, aponta a universalização de conceitos psicanalíticos como um dos principais entraves para a atualização de uma teoria que possa fazer-se trabalhar a partir das subjetividades atuais. Conceitos como a percepção da alteridade, por meio da diferença entre os sexos, Complexo de Édipo, falo, castração, cena primária e outros, são apontados como mitos e esquemas narrativos de determinada época, “tomados em sua literalidade” e introjetados dentro de um esquema metapsicológico, além de serem convenções terminológicas que buscam abarcar a complexidade dos fenômenos inconscientes, mas que não devem ser tomadas como a-históricas e fixas.

“Se a homossexualidade, durante muito tempo, constituiu um problema para a teorização psicanalítica, hoje em dia é a estranha homofobia de vários discursos apresentados em nome da psicanálise que se revela problemática. Se a psicanálise tem se interrogado sobre a homossexualidade durante mais de um século, hoje são as homossexualidades, pela sua maior visibilidade social e jurídica, que a interrogam. Não se trata mais de constituir saberes sobre a “origem” ou os “mecanismos psíquicos” da homossexualidade, mas de analisar a hostilidade teórica, clínica, contratransferêncial provocada em alguns psicanalistas por esta escolha de objeto. Em vez de pretender definir psicanaliticamente as homossexualidades, este livro tenta considerar o que essas podem revelar do funcionamento de um tipo de discurso psicanalítico, da sua tentação de ontologia, dos seus pontos cegos anti-psicanalíticos. Portanto, visa refletir sobre o modo em que configurações minoritárias de sexualidade e sexuação ensinam à psicanálise a permanecer psicanalítica”. (Ayouch, 2015, p. 25).

Ayouch (2015) problematiza estes conceitos para, em seguida, apontar soluções possíveis, a fim de que tais concepções teóricas não levem, automaticamente, à patologização de sujeitos alterizados, minoritários, que se constituíram diferentemente de uma prescrição homogênea cis-hetero-normativa e ocidental. O autor propõe tomar em extensa análise o conceito de hibridez, principal instrumento pelo qual tornar-se-ia possível tal reposicionamento da psicanálise contemporânea. A psicanálise contemporânea é múltipla, polissêmica, polifônica e polimorfa.

No cerne da prática psicanalítica haveria uma hibridação: o fenômeno transferencial. A transferência torna nebulosa a linha que separa o paciente do analista. No encontro analítico, a hibridação é mútua e ambos saem transformados pelo processo. A hibridez não se trata, para Ayouch (2015), de um encontro inaugural entre dois elementos, que geraria então algo novo e imutável, de ontologia decidida. É uma abertura para a transformação. Ela seria processual, um devir que surge do confronto com a diferença: com o reconhecimento da alteridade e com a possibilidade da coexistência com o diferente, mesmo quando os elementos estão em contradição.  A alteridade não é apenas algo que se põe no outro, mas que emerge no sujeito pelo Outro que nos constitui. A possibilidade de reconhecer o outro como alteridade coloca em potência a dimensão dos desconhecimentos que definem o eu.

A hibridez é central para a teoria psicanalítica contemporânea. A própria noção de aparelho psíquico, dificilmente separável entre instâncias, trabalha em constante hibridação, operando deslocamentos, formações de compromisso, associações livres e perlaborações. Para além de sua importância metapsicológica, Ayouch (2019) sustenta que a alteridade, centro da escuta clínica, produz hibridez quando não busca reduzir o desconhecido do inconsciente do paciente ao conhecido pelo analista.

Colocadas as bases de seu pensamento, Ayouch debruça-se sobre a hibridação da psicanálise sob os vértices do gênero e da colonialidade. Para isso, não sustenta uma clínica particular dos sujeitos minoritários, nem uma criação de uma teoria das minorias, mas sugere a possibilidade de uma psicanálise hibrida. Esta psicanálise buscaria conversar com outros campos de saber para pôr à prova e combater o universalismo de algumas de suas concepções, pois existe uma dificuldade posta em questionar-se acerca de formações discursivas de uma subjetividade da qual se participa. Uma psicanálise hibrida também levaria em consideração a especificidade da inscrição da violência nas subjetivações dos sujeitos alterizados, o que implica não se isentar de críticas.

Um importante aspecto da hibridez na perspectiva de Ayouch (2019) é que esta carrega consigo uma dimensão política de tensionamento das relações de poder dentro da psicanálise, sobretudo, uma fantasia implícita de pureza dos corpos ou das raças “maculadas” por uma hibridação das sexualidades dissidentes ou de culturas não ocidentais, em termos geográficos ou simbólicos. Nesse sentido, trata-se de acompanhar a psicanálise até os limites de sua estrutura teórica, até sua diferença frente a outros campos, para que um pensamento possa emergir e produzir novos saberes, a partir de sua desterritorialização.

Pode parecer que a psicanálise já opera de forma híbrida na interlocução com diferentes campos – artes, literatura, filosofia, sociologia, antropologia, neurologia, psiquiatria –, correndo-se o risco de se cair em um lugar-comum de inércia e autossuficiência. Ayouch (2019) almeja, com isto, fornecer instrumentos teóricos para que a psicanálise se torne habitável a sujeitos excluídos de seu corpus de inteligibilidade.

A psicanálise não tem a incumbência de prescrever ou de descrever comportamentos, mas de transformar o sofrimento psíquico da angústia – tomar cada mudança no campo social e das identidades como um enunciado de algo novo que se inscreve nas subjetividades e modifica o pensamento teórico e a prática clínica. A angústia é o sinal da destituição subjetiva, ou seja, o sujeito aí é um objeto-causa do desejo do Outro. A angústia antecipa-se ao sujeito, neste ponto, em que ele não é ainda. O tempo da angústia é o tempo da mudança, e o tempo da angústia requer alguma coisa, para além da castração.

Acreditar na capacidade da psicanálise em mitigar o sofrimento psíquico, é um convite a resgatar a potência de um pensamento psicanalítico que deve hibridar-se para manter-se vivo, considerando cada vez mais a alteridade possível. Nesse sentido, conforme Butler (2013), o abalo das topografias tradicionais do sistema patriarcal faz parte de um quadro de alteração das coordenadas atuais de inteligibilidade da sexualidade. O surgimento de zonas intermediárias, transições e hibridizações até então inéditas, fazem explodir as delimitações, classificações e práticas legitimadoras do aparato conservador.

Por conseguinte, as subjetividades contemporâneas, a fluidez e variabilidade de suas existências, revelam o poder criativo da atividade humana, como imaginação radical, pois a produção de novas realidades está ligada à construção permanente de novos mundos, animados pelo desejo.

Habitar uma identidade, suficientemente confortável para a representação de si mesmo, e que convoca o reconhecimento do outro, colocando-o sob a proteção dos próprios aspectos inconscientes, perturbadores, e da tensão agressiva da intersubjetividade, é tarefa árdua, mas necessária para fins de “ser e sentir-se real”, segundo a conhecida expressão de Winnicott (2000) “verdadeiro self x falso self”, para descrever a convicção de um self que é vivido como verdadeiro.

Em todas as dimensões interseccionais podemos levantar a questão: o quanto a nossa escuta e intervenção fica, em lugar de produzir e reproduzir a norma. Enquanto continuarmos fazendo pensamentos de oposição (corpo x psiquismo; heterossexualidade x homossexualidade etc.), seguiremos reproduzindo uma leitura do mundo que se mantém binária.

Só poderemos, efetivamente, falar de uma psicanálise decolonial se renunciarmos a leituras e a intervenções patologizantes ou discriminatórias. Quando há um parâmetro absolutamente organizado do que é saúde e do que é “normal”, a possibilidade de escutar, para além da prescrição, se torna muito difícil, pois o modelo sugere que o sujeito precisa ser encaixado em algum determinante (Ayouch, 2019).

“Quando se reflete sobre raça, sobre colonialidade, primeiro reflete-se sobre a própria categoria de universalidade. Quando se aborda a questão da raça, tem que ser abordada também a relação com questões de gênero, sexualidade e classe. O que é silenciado hoje em dia nos consultórios, tem a ver com aquilo que foi historicamente silenciado na história da colonização”. (Ayouch, 2019, p. 188).

Paul Preciado, filósofo e escritor feminista transgênero, homem trans não binário, é autor de diversas obras cujos temas versam sobre filosofia de gênero, teoria queer, arquitetura, identidade e pornografia, é autor, dentre outros títulos, de “Eu sou o monstro que vos fala” (2022), inspirado no pensamento de Michel Foucault, Donna Haraway, Gilles Deleuze, Judith Butler e Jacques Derrida.

Preciado, em 2019 escreveu o texto “Eu sou o monstro que vos fala” é um relato que possui força capaz de produzir um processo reflexivo importante entre os adeptos das teorias da psicanálise e de sua prática clínica. Localizando-se a partir do corpo de um homem trans-não-binário, o autor elabora este relatório (que pode ser visto também como um manifesto) direcionado à academia de psicanalistas da Escola da Causa Freudiana reunida, da Paris de 2019. Em uma sala, com cerca de 3500 psicanalistas, Paul é vaiado e ridicularizado pela plateia, que não permite que seu discurso termine. O autor então lança o texto na íntegra, a fim de que a audiência possa ter acesso para que os trechos gravados e difundidos nas redes sociais, fora de contexto, possam ser explicados.

Preciado coloca-se radicalmente contra o regime de diferenciação sexual moderno, bem como contra a prática clínica psicanalítica que, segundo ele, agiria dentro desse paradigma. O autor aponta que no discurso psicanalítico, o corpo trans é considerado “como sujeito de uma ‘metamorfose impossível’ […] incapaz de resolver corretamente o complexo de Édipo” (Preciado, 2022, p. 13).

Dentro desse quadro de patologização, tanto por parte da psicanálise, e psiquiatria, quanto do sistema jurídico, ele se coloca como o monstro responsável pelas linhas de pensamento/atuação produzidas: “Eu sou o monstro que se levanta do divã e toma a palavra, não tanto como paciente, mas como cidadão, como um igual, monstruoso” (Preciado, 2022, p. 14).

O autor caracteriza sua história de vida a partir de um alguém que não se conformou com o regime da diferenciação sexual. Ele descreve que tinha medo da morte por não se sentir confortável na situação/corpo/sexualidade que se encontrava enquanto jovem. Preciado comenta ainda que não encontrou refúgio no tratamento da chamada saúde mental, mas através de referências literárias. Ele declara que encontra nos livros uma saída para o regime de diferenciação sexual, entendendo que “a liberdade é uma porta de saída […] algo que se fabrica” (Preciado, 2022, p. 22).

Em sua história, como Beatriz (na época) se reconhece, então, como pessoa trans e inicia o processo de transição de gênero. Comenta que aceitou o processo de patologização da medicina e da psicanálise para passar pelo processo de transexualização, fazendo referência às sessões de psicanálise às quais foi obrigado a se apresentar, a fim de que tivesse certeza sobre a sua decisão. Preciado discorre sobre a manipulação da testosterona em seu corpo e como essa manipulação foi produzindo efeitos ao longo do processo, como quando sua voz mudou e ele se sentiu finalmente reconhecido entre os pares homens em um ambiente público, uma vez que, enquanto era lido em um corpo feminino, era constantemente reconhecido enquanto um sujeito subalterno.

Preciado (2022) faz uma dura crítica à psicanálise de Freud e Lacan. Denunciando que os pais desse pensamento agiram em conformidade com o sistema de diferenciação sexual, patologizando todos aqueles que não se enquadram em seu sistema. Para o autor, Freud e Lacan teriam contribuído para a normalização das crianças intersexo, e, ao mesmo tempo, entendiam a transexualidade como uma forma de patologia. Depois de realizar um balanço histórico de sua vida e relacioná-la ao processo de transexualização, o autor lança mão de argumentos que darão base à sua crítica da psicanálise.

O autor demonstra formação e estudos teóricos consideráveis a respeito das discussões em ciências humanas e sociais, alinhando seu texto a trabalhos de vanguarda na área, que buscam produzir um processo de reflexão sobre os fundamentos aos quais essas disciplinas estão assentadas. O texto é bastante elucidativo e parece atingir seu objetivo de contestação sobre a teoria e a prática psicanalíticas. Seu tom, como o próprio autor menciona, é de insubmissão.

“Eu já fui ‘uma mulher em psicanálise’. Eu fui designado para o sexo feminino, e como o macaco mutante, saí daquela ‘jaula’ estreita, certamente para entrar em outra jaula, mas pelo menos desta vez por minha própria iniciativa. (…) Por trás das máscaras de feminilidade e masculinidade dominantes, por trás das máscaras de heterossexualidade normativa, existem, de fato, múltiplas formas de resistência e desvio”. (Preciado, 2022, p. 292).

Sem dúvida, é uma leitura recomendada para todas as pessoas que buscam compreender melhor outras formas de viver, outras formas de produção de corpos e da reprodução da vida social. Especialmente recomendado a psicanalistas, traz ideias e propostas com um traço bastante inovador, bem como toda obra do autor.

No que concerne à teorização de processos de transexualidade e identidade de gênero, que têm tomado o debate público nos últimos anos, é também uma leitura indicada para quem trabalha com educação para a diversidade e/ou educação de forma ampla, uma vez que lança luz a importantes questões da área.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É fundamental examinar as representações de gênero dos analistas, bem como suas determinações ideológicas e de classe, para que a aplicação do método não seja obstruída por escotomas que possam dificultar sua posição. Identificar e trabalhar as resistências internas da psicanálise para acomodar as mudanças nas sexualidades contemporâneas permitirá que seu poder transformador do sofrimento humano não seja engolido pelas tentativas de restauração conservadora, ocultas nos dispositivos normativos restritivos da vida social.

Precisamos de uma psicanálise hibrida e situada, que possa desnaturalizar certas relações de poder, que coloca em crise perspectivas históricas, mantidas como “oficiais”, para, assim, propor formas alternativas de construção do comum. Conforme Preciado:

“Ou todos nós temos uma identidade, ou não há identidade. Todos nós ocupamos um lugar diversificado em uma complexa teia de relações de poder. Ser marcado com uma identidade significa simplesmente não ter o poder de nomear a própria posição de identidade como universal”. (Preciado, 2022, p. 293).

Assim, necessitamos repensar o enigma que impulsiona o melhor de nossos recursos teóricos e clínicos para a resolução do sofrimento psíquico. Isso implica na necessidade de superar dogmatismos normalizadores e certezas zelosamente preservadas, para avançarmos a novos paradigmas de compreensão, de ética e acolhimento do sofrimento humano plural, na contemporaneidade.

REFERÊNCIAS

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WINNICOTT, Donald. W.Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Editora Imago, 2000.

Anexos de imagem: Figura 1 – Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo – Coren. Disponível em: https://portal.coren-sp.gov.br/ Acesso em 3 mai.


[1]Psicóloga Clínica e Escolar (UNISANTOS), Pós-Graduada em Psicopedagogia (UNISANTOS), Psicanalista Psicodinâmica e análise do Contemporâneo (PUCRS), Terapeuta Cognitiva Comportamental e proprietária do consultório particular Instituto Inclusão Brasil, São Vicente-SP. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4036950234432661 E-mail: marinaalmeida@institutoinclusaobrasil.com.br

Marina da Silveira Rodrigues Almeida – CRP 06/41029

Psicóloga Clínica, Escolar e Neuropsicóloga, Especialista em pessoas adultas Autistas (TEA), TDAH, Neurotípicos e Neurodiversos.

Psicanalista Psicodinâmica e Terapeuta Cognitiva Comportamental

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