Parte 1 – O ALIENISTA, DE MACHADO DE ASSIS: UMA ANÁLISE PSICANALÍTICA E CONTEMPORÂNEA DA SAÚDE MENTAL

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“Pensamentos valem e vivem pela observação exata ou nova, pela reflexão aguda ou profunda; não menos querem a originalidade, a simplicidade e a graça do dizer.”

Machado de Assis

Marina da Silveira Rodrigues Almeida[1]

1. BREVE INTRODUÇÃO SOBRE ALIENAÇÃO E SAÚDE MENTAL

As inúmeras produções literárias do autor Machado de Assis o colocam numa posição de cânone nacional. O reconhecimento de Machado de Assis como o Bruxo de Cosme Velho, abordando temas inquietantes, tabus sociais e polêmicos de seu tempo com conhecimento digno de pesquisador da complexa consciência da linguagem literária, o que, obviamente, também se articula com seu primor estético bastante original (Bernd, 1989, p. 89).

Nessa perspectiva, o modus operandi da escrita machadiana acaba por revelar aspectos particulares da construção da loucura, numa construção literária que escapa às verdades da sua época, ascendendo novos debates na contemporaneidade (Bernd, 2011).

Os alienistas eram aqueles que se ocupavam de estudar, compreender, cuidar e ajudar os pacientes que sofriam de “alienação mental” a superar a doença. Atualmente, o termo alienista é considerado obsoleto e anacrônico em muitos países, embora ainda seja algumas vezes usado na Europa.

Segundo o Dicionário Michaelis a etimologia da palavra alienista, vem do latim alienus+ista, que tem relação com a alienação mental ou seu tratamento; especialista no estudo e tratamento de doenças mentais.

Na verdade, as suas raízes etimológicas parecem ser europeias, derivando tanto do latim “alienus” (outro) como do francês “aliene” (insano). Em inglês, a palavra está obviamente relacionada a “alien” (estrangeiro, estranho ou ser do espaço sideral), “alienar”, significa isolar, excomungar ou tornar hostil, rejeitar e “alienação” (alienação ou perturbação mental).

O conceito de “alienação mental” deu origem ao uso do termo “alienista”, referindo-se aos profissionais que cuidavam e tratavam de doentes mentais. Alienistas que mais tarde foram influenciados pelo trabalho de Sigmund Freud e Carl Jung e, portanto, significativamente mais orientados psicologicamente (Foucault, 2005).

Ambos entendiam o sofrimento mental e a sintomatologia do paciente psiquiátrico como decorrentes de uma alienação excessiva da sociedade e da falta de contato com seu verdadeiro eu (autoalienação). Tudo isso tem considerável relevância atualmente para a forma como compreendemos e tratamos os sofrimentos emocionais.

Freud e Jung se concentraram na psicologia dos transtornos mentais, em vez de em sua neurologia ou fisiologia, influenciando profundamente a maneira como psiquiatras e psicoterapeutas (ainda chamados de alienistas no início do século XX) conceitualizavam os sintomas.

2. EDIÇÃO CONTEMPORÂNEA DO LIVRO O ALIENISTA, DE MACHADO DE ASSIS

O livro O Alienista foi publicado originalmente em 1882, o texto trata do território subjetivo entre a sanidade e a loucura, reflete e escancara a fragilidade do conceito de normalidade e loucura.

A leitura de O Alienista² nesta nova edição publicada pela Editora Cobogó (2020) é ilustrada pela obra de Rivane Neuenschwander³, composta de bonecos feitos com garrafas de vidro, tecido e papel machê, que arremessa as personagens da trama machadiana para o contexto atual, criando uma “ficção dentro da ficção” que nos convoca a refletir sobre a irracionalidade e um despautério de grandeza nacional.

As livres associações entre a obra literária do século XIX e a obra visual homônima do século XXI, reverberam o pulso contemporâneo da história original: cobiça de poder, interesses políticos, dogmas religiosos e crendices.

No meio do caminho, imprime-se o humor irônico que é ferramenta autoral que produz prazer enquanto denuncia uma realidade absurda que se estabelece. Traz à tona a atualidade política do conto no Brasil contemporâneo, no qual desmandos e absurdos como o terraplanismo e a negação da ciência se encontram em aterradora sintonia com o populismo e o conservadorismo mundiais deste primeiro quarto do século XXI.

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²Assis, Machado, J. M., O Alienista, RJ: Editora Cobogó, 2020. Prefácio de Elton Corbanezi e Laymert Garcia dos Santos. Sobre Machado de Assis: Machado de Assis (Joaquim Maria Machado de Assis), jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e teatrólogo, nasceu no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro, em 21 de junho de 1839.

³Rivane Neuenschwander, formou-se pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais e pelo Royal College of Art, Londres. A artista aborda temas como memória, desejo, sexualidade, política e violência em trabalhos que convocam a participação do outro, seja no desenvolvimento, seja na formalização de ideias. Sua obra faz a mediação entre o íntimo e o público, o autoral e o coletivo. Participou de importantes exposições coletivas como a Bienal de Veneza (2003, 2005), a Bienal de São Paulo (1998, 2006, 2008) e a Bienal de Istambul (1997, 2011).

2.1. A OBRA: O ALIENISTA, DE MACHADO DE ASSIS

O livro O Alienista, é dividido em treze capítulos com títulos, e está inserido no movimento Realismo do Brasil, que teve início no ano de 1881, quando Machado de Assis (1839-1908), até então, era um escritor romântico, publicou a obra realista Memórias Póstumas de Brás Cubas. Dessa forma, o autor mostrava o seu desencanto com a estética romântica e o conservadorismo que ela representava. Após a publicação desse romance, o escritor também publicou duas outras grandes obras realistas: Quincas Borba e Dom Casmurro. Nelas o narrador empreende uma análise crítica da sociedade carioca e, sem idealizações românticas, faz um retrato fiel e irônico da corrupta e hipócrita burguesia do século XIX no Brasil (Bernd, 2005).

O Realismo surgiu como forma de oposição ao Romantismo. Desse modo, esse antirromantismo levou os autores realistas a rejeitarem a subjetividade e o sentimentalismo, recorrendo também a uma linguagem mais objetiva e analítica. Portanto, eles abandonaram o teocentrismo e privilegiaram o antropocentrismo, isto é, valorizaram a razão.

No Brasil, o Realismo também é caracterizado pela ironia, principalmente em relação aos costumes da burguesia, classe social celebrada pelos românticos, mas atacada pelos realistas. Dessa forma, o narrador realista faz crítica sociopolítica, centrada nos acontecimentos contemporâneos, e análise psicológica dos personagens.

Os protagonistas, integrantes da elite burguesa, são descritos sem qualquer idealização. Comumente são retratados como opressores, corruptos e hipócritas. Assim, o casamento, instituição burguesa, é colocado em questão quando o narrador expõe o adultério feminino e a condição do homem e da mulher na sociedade patriarcal. O comportamento, as atitudes, os interesses, as relações sociais e o egoísmo humano são colocados em pauta.

A loucura e a sanidade, o normal e o patológico, o alienista e o alienado, apresentam uma linha tênue na visão do autor, sendo o escopo do estudo deste capítulo, destinado a analisar a obra O Alienista como uma atualização do contexto contemporâneo do sofrimento psíquico, por meio da compreensão psicanalítica. Afinal todos nós estamos imersos no contemporâneo, e em se tratando de saúde emocional, angústias, sofrimentos humanos, somos rotulados rapidamente com algum tipo transtorno mental, por consequência será imperioso ser medicado, se encaixar a norma de saúde mental e tornar-se “normatizado” e capturado pelo poder neoliberal capitalista. Contexto, muito parecido com os descritos na obra O Alienista (Freitas, 2001).

Historicamente, o tratamento clínico e social dado aos sujeitos que apresentam algum sofrimento psíquico se relaciona com a cultura de cada época e com a forma vigente de exercer o poder. Por exemplo, na Antiguidade, a loucura era considerada a categoria geral que concentrava todos os tipos de sofrimento mental. Lembremos de como era vista sob a ótica metafísica, sendo considerada fruto de castigo dos deuses ou de possessão demoníaca. Hoje, essa visão ficou ultrapassada e, com ela, o uso da categoria “loucura” para expressar formas de sofrimento psíquico. Por outro lado, com o surgimento do alienismo pineliano na modernidade, há a inauguração do embrião que dá origem à psiquiatria, e aquilo que era reconhecido pela ótica da loucura é inserido na lógica dos eventos naturais “cuja verdade se enuncia por si mesma nos fenômenos observáveis” (Foucault, 2005, p. 167).

Na modernidade, o paradigma psiquiátrico acerca das doenças mentais segue a lógica do dispositivo saber-poder biomédico, para a qual a cura das afecções mentais significa o retorno ao estado anterior à patologia. Segundo Michel Foucault (2005, p. 188), “o poder disciplinar forjado no âmbito da racionalidade do alienismo não é somente uma forma de tratar o sofrimento psíquico, mas uma estratégia política eficaz de controle e coerção social”. Seguindo essa pista inaugurada por Foucault, vemos que, nos dias de hoje, categorias diagnósticas como depressão, paranoia, melancolia e ressentimento, por exemplo, versam mais sobre modos de participação social e de processos hegemônicos de subjetivação do que sobre doenças como fenômenos naturais observáveis.

Concordamos com o psicanalista Christian Dunker (2015, p. 78) quando afirma que as categorias diagnósticas de nossa época servem muito mais para capturar as formas hegemônicas de mal-estar e traduzir em uma gramática passível de normalização do que para expressar a natureza de uma doença mental. Assim, a forma depressiva, paranoica, melancólica e ressentida de sofrer é, antes de expressar uma doença natural, é um modo subjetivo de responder às demandas e exigências da forma neoliberal de socialização, por consequência levando ao apagamento da alteridade humana.

Machado de Assis é o único escritor brasileiro de fato realista, já que, no final do século XIX, a maioria dos escritores nacionais preferiu se filiar ao Naturalismo. No entanto, os dois estilos apresentam traços em comum, pois ambos são antirromânticos, privilegiam a razão e fazem crítica sociopolítica (Gledson, 2003).

Repleta de um tom humorístico e irônico, a obra O Alienista de Machado de Assis possui um narrador onisciente. Narrado em terceira pessoa, o livro revela a dedicação do protagonista principal, Dr. Simão Bacamarte, que, na verdade, fica obcecado com seus estudos na área de psiquiatria. Além disso, ele aborda os temas dos interesses políticos, da ambição e do poder através da personagem de Porfírio.

A crítica social e a análise psicológica das personagens revelam a fase realista de Machado de Assis.

2.2. CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO: DA OBRA O ALIENISTA

O fim do século XIX encontra um Brasil em crise. Muitos foram os fatos que colaboraram para ela: entre eles, destaca-se o desmoronamento da economia baseada na cana-de-açúcar, acelerado pela extinção do tráfico de escravos, através da Lei Eusébio de Queirós, em 1850. Com a decadência do sistema açucareiro, a economia volta-se para o Sul e Sudeste, onde imigrantes europeus, que aportavam no país desde a década de 40, eram empregados nas lavouras de café (Gledson, 2003).

Trata-se, enfim, de um período de mudanças econômicas, políticas e sociais, podemos citar: enfraquecimento do governo de D. Pedro II e a intensificação dos ideais republicanos; o crescimento da campanha abolicionista; uma economia agrária, com a concentração da renda nas mãos dos fazendeiros; na década de 70, a entrada de quase duzentos mil imigrantes no país, aumentada, nos anos 80, para quase meio milhão; na década de 80, comícios e passeatas de intelectuais e estudantes em prol das campanhas abolicionista e republicana; em 1888, a Abolição da Escravatura; em 1889, a Proclamação da República; o início do processo de modernização da sociedade brasileira, com a dinamização da vida social e cultural, principalmente no Rio de Janeiro, sede do governo; maior desenvolvimento da cultura, com incremento no número de matemáticos, economistas, médicos, historiadores, além dos escritores; um clima propício à absorção, pelas artes, das novas ideias vindas da Europa e lá já consolidadas, como o liberalismo, o socialismo e as teorias cientificistas (Gledson, 2003).

Todos esses fatores, com destaque para o tema da Abolição e o da República contribuiriam para as opções ideológicas do homem culto brasileiro a partir de 1870, cabendo à chamada “Escola do Recife” (liderada por Tobias Barreto e seu fiel discípulo Sílvio Romero). Marca a cultura da época uma ânsia por objetividade que responde aos métodos científicos cada vez mais exatos nas últimas décadas do século. Considerando que o Realismo implica o distanciamento da postura subjetiva, para o escritor Machado de Assis, que se volta para a realidade exterior e não usa mais sua vida pessoal como ponto de partida para a criação da obra de arte. O interesse, agora, é pelo objeto externo, e não mais pelo sujeito (Gledson, 2003).

O aprofundamento da narrativa de costumes que já se cultivara no Romantismo e que se propõe, a partir daqui, a desnudar as mazelas da vida pública e os contrastes da vida íntima, buscando, para ambas, causas naturais ou culturais. É preciso compreender e explicar o mundo real por meio da razão e do conhecimento científico. É necessário o embasamento, o apoio de teorias que auxiliem essa explicação.

Várias foram as correntes científicas que serviram para balizar à obra de arte realista. Entre elas, cabe destacar: o Determinismo de Taine, segundo o qual o Homem — e seu comportamento e, portanto, a Arte está condicionado a três fatores: a herança (determinismo biológico ou hereditário); o meio (determinismo social ou mesológico) e o momento (determinismo histórico); o Positivismo de Auguste Comte, que defende a existência da razão e da ciência como fundamentais para a vida humana, pregando uma atitude voltada para o conhecimento positivo, concreto e objetivo da realidade; o Criticismo e o Anticlericalismo de Renan, que prega uma revisão do papel histórico da igreja católica, apontando-a como “mistificadora da verdadeira fé”; o Socialismo “utópico” de Proudhon, que propõe a organização de pequenos produtores em associações de auxílio mútuo, calcado em ideias antiburguesas e antirreligiosas; o Evolucionismo de Darwin, que concebia o mundo como um processo de crescimento e de evolução e cuja repercussão provocou enorme revolução em outras ciências, inclusive as sociais. Esse conjunto de ideias acabou por caracterizar a chamada “geração materialista ou cientificista”, assim designada pela semelhança entre as atitudes dos autores e dos cientistas (Gledson, 2003).

O escritor Machado de Assis, movido por sua preocupação com a objetividade, tende a compreender o homem, através da personagem de Dr. Simão Bacamarte, como um “caso” que deve ser analisado à luz da ciência.

A intensificação radical da abordagem científica na obra de arte acabaria por conduzir ao Naturalismo, que considera o homem como uma máquina dirigida por leis físicas e químicas, pela hereditariedade e pelo meio social, dirigindo seu interesse, principalmente, para temas da patologia humana e social. No Realismo, observa-se a “humanização” das personagens, agora “de carne e osso” e não mais divididas entre heróis incríveis e terríveis vilões.

A profundidade e complexidade das concepções psicológicas presentes na obra de Machado de Assis, é notável quando em sua obra o autor desenvolveu um conceito de loucura estruturado na ideia de inconsciência, no choque entre multiplicidade e unidade do eu, e na dinâmica entre homem e sociedade. Talvez, por ter feito literatura e não ciência, Machado de Assis teve a liberdade suficiente para expressar seus pensamentos e intuições sem ter que se preocupar em fundamentá-los aos olhos da doutrina positivista, pois sabia que o positivismo e o materialismo não eram os únicos caminhos para conhecimento do homem e de suas adversidades. Portanto, suas ideias continuam atuais para a psiquiatria, psicanálise e psicologia contemporânea.

2.3. SINOPSE DA OBRA O ALIENISTA

A obra discorre sobre a história do médico Dr. Simão Bacamarte, o personagem Alienista, que viajou pela Europa e Brasil, um estudioso do sofrimento humano, com 34 anos. Abriu um consultório na cidade brasileira de Itaguaí, e após seis anos mais tarde resolveu se casar com uma viúva de vinte e cinco anos, Dona Evarista. A relação não era baseada no amor, e sim na possibilidade de ter filhos. Dr. Simão Bacamarte acreditava que Dona Evarista seria uma boa esposa para o intuito dele de ter herdeiros, contudo não foi possível.

Mais tarde, ele resolveu criar um manicômio na cidade, o qual recebeu o nome de Casa Verde, “bastilha da razão humana”. Empenhado em seus estudos voltados para a psiquiatria, Simão começa a ter muitos internos que viviam em Itaguaí e arredores. Desejava estudar a mente dos desajustados da cidade, daqueles com desequilíbrio das faculdades mentais, ao menos inicialmente; claro, certamente também curá-los de sua condição. Então o médico começou a enxergar loucura em muitas pessoas. O primeiro a ser internado foi o senhor Costa, um homem que perdeu toda sua herança, foi considerado louco pelo alienista. Essas atitudes começam a deixar os cidadãos da cidade apreensivos, o que gerou um movimento liderado pelo barbeiro Porfírio. O movimento, que ficou conhecido como “Revolta do Canjica”, tinha sido batizado dessa forma por Canjica ser o apelido do barbeiro.

Diante dos protestos na frente da sua casa, o Dr. Simão Bacamarte recebe a massa de pessoas com indiferença e retorna aos seus afazeres. No entanto, Porfírio tinha o intuito de seguir carreira política e, ao chamar Simão para uma reunião acaba se aliando a ele. E as internações continuam na cidade. Devido as internações dos 50 membros que estavam apoiando a revolução de Porfírio, outro barbeiro da cidade, João Pina, consegue auxiliar na deposição de Canjica. Ainda que todos tentassem lutar para acabar com a Casa Verde, o local se fortalecia com o passar do tempo.

Numa passagem da obra, até mesmo Dona Evarista, mulher do Alienista, é internada. sob a acusação de ter o diagnóstico de “mania sumptuária”. Quando 75% da cidade estava internada, Simão Bacamarte resolve voltar atrás e liberar todos os internos, certo de que sua teoria estava errada. Assim, o alienista recomeça a internar outras pessoas, agora seguindo outra teoria. O primeiro interno é Galvão, o vereador da cidade. Tempos depois, conclui que a sua teoria está errada novamente, por isso, libera todos os pacientes internados na Casa Verde e conclui que o louco era ele. Assim, o alienista resolve se trancar na Casa Verde, onde morreu dezessete meses depois.

3. O HOMEM: MACHADO DE ASSIS SUA HISTÓRIA E LITERATURA

Muitos biógrafos indagaram o histórico de Machado de Assis com indignação, o do “milagre” da literatura machadiana, sem atinar como um menino pobre, mulato, com epilepsia, com gagueira, e que diziam todos ter nascido na miséria, no morro do Livramento, neto de escravos, filho de um pardo e de uma lavadeira portuguesa, conseguiu sozinho ascender verticalmente até posições de prestígio social e na literatura nacional. Perguntavam-se os críticos –, como pudera ele descrever tão bem uma camada social à qual não teria tido acesso? (Bernd, 2018)

O primeiro desmentido dessa lenda foi feito por Lúcia Miguel-Pereira⁴, em prefácio à edição de 1944 da biografia de Machado que lançada em 1936, e que continua tendo repetidas reedições. Lúcia Miguel-Pereira esclareceu que a descoberta da certidão de batismo do escritor e de outros documentos tornou possível esclarecer os dois “mistérios” de Machado de Assis, o familiar e o literário. Ao contrário do que se imaginava, embora tendo nascido sem fortuna, o escritor nunca viveu na miséria. Seus pais viviam confortavelmente em uma casa situada na Chácara do Livramento, onde eram benquistos por todos como agregados. Sua mãe, Maria Leopoldina Machado de Assis – que ele perdeu quando tinha 10 anos e não 2 anos, como antes se acreditava – era uma senhora portuguesa de fino trato, costureira e bordadeira (e não lavadeira), que gozava da amizade da proprietária, dona Maria José Mendonça Barroso, também portuguesa, viúva do general e senador Bento Barroso Pereira, que fora por duas vezes foi ministro do Império. O pai do escritor, Francisco José de Assis, era mestiço, mas, segundo fortes indícios, filho do padre Antônio de Azevedo, açoriano, e de uma negra (ou parda) escrava liberta. Era pintor e dourador, pertencente a uma tradicional corporação de artesãos existente no bairro do Livramento, constituída por libertos e mestiços. Não era um ignorante, gostava de ler e sabe-se que assinava o Almanaque Laemmert, publicação oficial da Corte Real no período 1844 -1889. Os padrinhos de batizado do futuro escritor, realizado na capela particular da família, foram a própria dona Maria José e Joaquim Alberto de Sousa Silveira, que era um dignitário do Paço Imperial – ambos perpetuados na sua memória, pois haviam dado a ele seus prenomes, Joaquim Maria.

Temos inúmeros estudos universitários atuais que se ocupam das origens de Machado de Assis, que explicam seu precoce desenvolvimento intelectual pelo próprio meio refinado em que foi criado, que lhe teria dado inclusive a sua característica de elegância no modo de se vestir e de tratar os outros.

A pesquisadora Ana Amélia Chaves Teixeira Adachi, da Universidade Federal de São João del Rei (2007), escreveu sobre “o papel da família de Machado de Assis”:

“Quando buscamos as origens de Machado de Assis percebemos que, embora mulato, fora criado no palacete da madrinha, acostumado com pinturas, livros e boas maneiras; tudo isso proporcionado por um capital social dos pais. Machado de Assis colhia os frutos de uma boa rede de relacionamentos derivados do meio social em que estavam inseridos e que muito lhe favoreceu a adoção de disposições culturais. Essas experiências constituíam importantes referências de base para o romancista. A morte da madrinha em 1845 e a da mãe em 1849 foram certamente traumáticas para o menino. Mas logo, tendo seu pai se casado novamente, a madrasta Maria Inês lhe forneceria uma continuidade de carinho e afeto verdadeiro – interessava-se pela sua educação, procurando até que aprendesse francês, língua indispensável naquele tempo. Quando Francisco faleceu, algum tempo depois, o menino continuou a viver com a madrasta, ajudando-a a ganhar a vida como cozinheira, ao que parece, de um dos mais finos colégios do Rio de Janeiro – onde vendia balas e ao mesmo tempo aproveitava para assistir a algumas aulas. Durante esse breve período – uns quatro anos – chegou a trabalhar também como “auxiliar do culto na Igreja da Lampadosa”. O francês que aprendeu na infância deve ter sido muito bem ministrado, pois sabe-se que foi exímio durante toda a vida nessa sua segunda língua.

O que é certo é que a partir de 1855 (aos 16 anos) já se inseria na vida jornalística e literária, frequentando a roda intelectual da livraria do escritor Francisco de Paula Brito e iniciando, com a publicação de um poema, sua colaboração contínua e efetiva para a revista literária Marmota Fluminense. Nesse período já tomava aulas de latim com um padre – outro imperativo da época. Aos 17 anos consegue o emprego de aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional, mas logo seu talento literário é reconhecido pelo diretor daquela instituição, o escritor Manuel Antônio de Almeida, que se torna seu protetor. Dois anos mais tarde já estava completamente inserido no meio das letras, tornando-se amigo também dos já consagrados Gonçalves Dias, José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo.

Vemos que a “lenda do pobre menino infeliz que lutou para ser reconhecido” deve ser substituída pela do “rapaz sortudo” que cedo conseguiu superar algumas dificuldades e instalar-se, por toda a vida, como merecia – aos 21 anos vamos encontrá-lo, a convite de Quintino Bocaiúva, como redator do Diário do Rio de Janeiro e colaborador de vários outros órgãos de prestígio.” (Adachi, 2007, p. 35)

Há muitas interpretações acerca da obra de Machado de Assis que se pautaram no pressuposto da constituição psiquiátrica ter implicado nos aspectos de suas produções literárias, principalmente a epilepsia, mas eventualmente também a superação social de sua condição de mulato – como responsáveis pelo seu ato criador. Tal tendência, foi apresentada praticamente ao longo de todo o século XX, mas principalmente nas revistas das décadas de 1930 e 1950, acompanhou a apropriação de diversas teorias psiquiátricas no Brasil, permitindo passar em a recepção de conceitos teóricos de possíveis diagnósticos psicopatológicos atribuídos a Machado de Assis, tais como: degeneração, nevrose, psichose, gliscroidia, leptossomia, zoopsia, subconsciente e megalomania (Bernd, 2018).

Historiadores, biógrafos, psicanalistas analisaram as narrativas de Machado de Assis ao longo dos anos, a partir da premissa de que sua atividade mental, era especializada por ser mórbida e doentia, e, portanto, organizou a temática expressamente nos textos.

Essas leituras interpretativas sobre a personalidade de Machado de Assis, derivam de uma perspectiva biográfica psicologizante, por interpretações dos elementos peculiares do sofrimento emocional e características individuais do autor; permitem tanto evidenciar que o discurso das ciências da saúde marcou a cena cultural brasileira naquele período de forma a atacar a potencialidade da subjetividade humana, focar no viés da psicopatologia como uma ferramenta cientificamente valida e certeira, atacando a autoestima, potenciais criativos e consequentemente a desqualificação do autor. Temos a tríade social do estereótipo, preconceito e exclusão social, que atualmente chamamos de narcisismo das pequenas diferenças e interseccionalidade cultural (Freitas, 2001).

No Brasil do final do século XIX e início do XX, as práticas discursivas estavam longe de um alinhamento consensual e unívoco. Ocorriam debate históricos. A libertação dos escravos teve forte impacto em todos os domínios da vida nacional, e o advento da República trouxe em seu bojo o discurso da transformação social, do surgimento de uma nova sociedade. E esse projeto de mudança andou lado a lado com as aspirações da ciência, principalmente em função da emergência, mesmo que o princípio cambaleante, do higienismo social. Todos esses elementos precisam ser contemplados, pois para muitos estudiosos machadianos a incorporação do discurso médico-psiquiátrico trazia em seu bojo o poder de designar a verdade dos fatos sociais.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Destacamos que os esforços de retratar Machado de Assis como branco demonstram como a violência racial tem organizado as políticas de memória sobre a história do país e dos seus representantes negros da cultura brasileira.

O embranquecimento de Machado é produto da apropriação da sua memória por parte de homens brancos que o queriam como branco, para legitimar um projeto de país em que pessoas negras seriam apenas resquícios de um passado que desejam esconder, negar e esquecer para sempre.

O curioso é que Machado de Assis escreve sobre o enigmático inconsciente sem ter entrado em contato com a teoria de Freud. Suas obras começaram a ser inscritas antes do surgimento da Psicanálise e das constatações freudianas sobre o referido tema.

Autores literários de períodos aproximados de todo o mundo delineavam em suas obras a grande descoberta de Freud e sua revelação máxima: o inconsciente. Em busca de explicações para o sofrimento humano Freud nomeou e aprofundou estudos científicos, o que autores da literatura expressavam com sabedoria de alma e observavam com inteligência e sensibilidade os rumos universais os quais tomava a humanidade.

As obras literárias foram interesse de Freud em toda sua trajetória de escrita e descoberta da psicanálise. A obra de ficção apresenta personagens criados, que iluminam uma fidedigna leitura de aspectos históricos, sociais e culturais, bem como de aspectos psicológicos inconscientes subjacentes (Freitas, 2001).

Assim, Machado, por querer sempre encontrar as motivações interiores, “é um psicanalista — é o pensamento psicanalítico existindo porque a dúvida existe. Machado tinha o pensamento psicanalítico, anterior à própria psicanálise” (Freitas, 2001, p. 70).

No entanto, a ficção machadiana procura outro nível, que já não é o da introspecção, vale dizer, atinge os impulsos menos conscientes, a região dos abismos inconscientes e irracionais. Ao contrário do que parece à primeira vista, esses momentos são mais ou menos raros em Machado de Assis, porque, quase sempre, a sua necessidade de encontrar uma explicação racional acaba por trazer o conflito ao nível consciente e aí encontrar um jogo de impulsos antissociais e imposições da vida coletiva (Freitas, 2001).

A obra de Machado de Assis é uma grande contribuição à teoria psicanalítica, uma vez que partiu da sua ótica subjetiva suas observações da sociedade e cultura vigente da época.

O autor considerado aqui como pessoa humana, travou um amplo diálogo interno com as suas forças inconscientes, expressando-as criativamente através de suas produções literárias, manteve a capacidade de ter uma vida criativa proporcionando-lhe uma existência singular, como um homem a frente de seu tempo (Winnicott, 1988).

Finalizando, não se agrega valor descobrindo se um escritor é neurótico ou paranoico, mas em “descobrir o que subjaz ao efeito do texto sobre o leitor em potencial” (Green, 1988, p. 101).

REFERÊNCIAS

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LOURENÇO, Ana Carolina. A “objetificação” feminina na publicidade: uma discussão sob a ótica dos estereótipos. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. Maio de 2014, Vila Velha – Paraná. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/499879306/A-Objetificacao-Feminina-Na-Publicidade-Uma-Discussao-Sob-a-Otica-Dos-Estereotipos Acesso em: 21 mai. 2024.

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MORICE P., JOSSET P., CHAPRON C., DUBUISSON J.B. História de infertilidade. Atualização do Hum Reprod. 1995;1(5):497-504. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/9080223/ Acesso em: 04. Mai. 2024.

WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade, Editora Imago, Rio Janeiro, 1988.

CINEMATOGRAFIA INSPIRADA NA OBRA O ALIENISTA

O filme “Azyllo Muito Louco”, realizado por Nelson Pereira dos Santos, em 1970, foi inspirado no clássico de Machado de Assis. Filmado em Parati, o filme chegou a ser incluído na seleção brasileira do Festival de Cannes no ano de 1970.

Minissérie “O Alienista e as Aventuras de um Barnabé”, produzida pela Rede Globo em 1993, quem dirigiu foi Guel Arraes e o elenco foi composto por Marco Nanini, Cláudio Corrêa e Castro, Antônio Calloni, Marisa Orth e Giulia Gam.


[1]Psicóloga Clínica e Escolar (UNISANTOS), Pós-Graduada em Psicopedagogia (UNISANTOS), Psicanalista Psicodinâmica e análise do Contemporâneo (PUCRS), Terapeuta Cognitiva Comportamental e proprietária do consultório particular Instituto Inclusão Brasil, São Vicente-SP. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4036950234432661 E-mail: marinaalmeida@institutoinclusaobrasil.com.br

Marina da Silveira Rodrigues Almeida – CRP 06/41029

Psicóloga Clínica, Escolar e Neuropsicóloga, Especialista em pessoas adultas Autistas (TEA), TDAH, Neurotípicos e Neurodiversos.

Psicanalista Psicodinâmica e Terapeuta Cognitiva Comportamental

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