Parte 2 – O ALIENISTA, DE MACHADO DE ASSIS: UMA ANÁLISE PSICANALÍTICA E CONTEMPORÂNEA DA SAÚDE MENTAL

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“Cada qual sabe amar a seu modo; o modo, pouco importa; o essencial é que saiba amar.”

Machado de Assis

Marina da Silveira Rodrigues Almeida[1]

1. INTRODUÇÃO

1.1. Análise Psicanalítica e Contemporânea da obra O Alienista

A obra de Machado de Assis destaca-se frente às obras dos outros autores que no Brasil do século XIX abordaram as questões psicológicas. Se nesses a psicologia não mais passava de reverberações de teorias europeias, em Machado de Assis encontramos subjacentes ao seu texto, concepções sobre a conduta e o funcionamento psíquico que antecipam ideias freudianas e mesmo fenomenológicas, embora seu valor psicológico não consista apenas em antecipá-las; mas também em representar, com riqueza de detalhes, o ser humano em sua relação dinâmica com o mundo. De fato, muitos estudos têm revelado a profundidade psicológica da obra de Machado de Assis, bem como o intenso diálogo que ele, através de sua ficção, travou com a psiquiatria de seu tempo (Freitas, 2001).

Dentro da ficção criada pelo autor, as concepções psicológicas aparecem fundamentalmente em três níveis. Em primeiro lugar, nos discursos expositivos dos narradores e personagens machadianos; e segundo, no modo como são descritos os estados subjetivos; em terceiro lugar, na estrutura da trama. A articulação desses três níveis de análise, tendo em vista a própria terminologia do autor, permite reconstruir, de forma mais segura, os saberes psicológicos presentes na obra (Freitas, 2001).

No personagem do Dr. Simão Bacamarte, o Alienista, podemos observar os detalhes descritos sobre a importância do homem no contexto da obra, sua formação acadêmica, sua origem europeia, seu relacionamento com a nobreza e suas ambições pessoais. Vejamos no trecho do Capítulo I – De Como Itaguaí Ganhou Uma Casa De Orates.

“(…)As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas.

Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia.

—A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.

Dito isso, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas.”

“(…) A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas, que pela primeira vez apareciam verdes em Itaguaí. Inaugurou-se com imensa pompa; de todas as vilas e povoações próximas, e até remotas, e da própria cidade do Rio de Janeiro, correu gente para assistir às cerimônias, que duraram sete dias. Muitos dementes já estavam recolhidos; e os parentes tiveram ocasião de ver o carinho paternal e a caridade cristã com que eles iam ser tratados. (…)” (Assis, 2004, p. 1)

O patriarcado é um sistema social baseado em uma cultura, estruturas e relações que favorecem os homens, em especial o homem branco, cisgênero e heterossexual. Na sociedade patriarcal, prevalecem as relações de poder e domínio dos homens sobre as mulheres e todos os demais sujeitos que não se encaixam com o padrão considerado normativo de raça, gênero e orientação sexual. Por essa perspectiva, se o mundo fosse avaliado como uma escada de privilégios, o homem branco cisgênero e heterossexual seria o que mais acumula benefícios e que estaria no topo dos degraus. Logo, todos aqueles que não possuírem algumas dessas características, em relação ao gênero, raça ou orientação sexual, estariam abaixo nessa escada social piramidal (Bourdie, 1998).

No patriarcado, o homem desfruta de uma posição de privilégio e poder social, econômico e político, enquanto a mulher e outros sujeitos que fogem da norma são relegados à submissão e invisibilização. Em outras palavras, o homem possui melhores oportunidades e benefícios na sociedade, enquanto as mulheres e grupos marginalizados, além de não receberem os mesmos direitos, também precisam cumprir com uma série de obrigações (Bourdie, 1998).

No personagem de D. Evarista, podemos observar no trecho do Capítulo I – De Como Itaguaí Ganhou Uma Casa De Orates, sobre a condição da mulher na estrutura patriarcal e suas consequências atuais.

Aos quarenta anos se casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lhe. Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas, únicas dignas da preocupação de um sábio, D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte.

D. Evarista mentiu às esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos. A índole natural da ciência é a longanimidade; o médico esperou três anos, depois quatro, depois cinco.

Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher um regímen alimentício especial. A ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua resistência, explicável, mas inqualificável, devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes”. (Assis, 2004, p. 1)

Muitos são os enredos intrínsecos à objetificação da mulher – onde o corpo se constrói como palco desse fenômeno, já que é a forma mais presente do ser se pronunciar no mundo, a partir das experiências e sensações. No entanto, a autonomia e a liberdade da mulher para com seu próprio corpo são constantemente ameaçadas por estruturas patriarcais e preconceituosas, que configuram a cultura em que a sociedade ocidental se construiu (Dentz, 2008).

O corpo, além de expressão e emissor de sentidos, é objeto da cultura que o envolve – é reflexo influenciável do pensamento vigente em um dado momento histórico. Pensar no corpo como receptáculo da expressão de gênero com seus signos e significados – não ligado apenas à sua genitália, apontado como tal objeto, elucida um importante fator a ser analisado para compreender os padrões engessados de gênero a serem performados pelo indivíduo (Maluf, 2001). O corpo humano é um objeto de estudo desde os primórdios da sociedade, suas funções e suas relações com o meio são as grandes pautas abordadas pelos filósofos durante os séculos. Recentemente esses estudos têm, por consequência da ciência e evolução da sociedade, se moldado para, também, outras grandes discussões, e entre elas, o corpo humano como um objeto político. A malha social corrobora diretamente na forma como as pessoas se comportam, nas crenças e pensamentos. A construção da sociedade tem como base a submissão das mulheres perante os homens, ou seja, não dá para negar o fato do enraizamento dessas relações de poder até os dias atuais (Dentz, 2008).

A história, construiu uma visão patriarcal e racista perante os corpos, e essa visão vem acompanhada de ataques, violência e submissão. Muitas vezes abordados de maneira implícita, como é feito com a sexualização do corpo feminino na mídia, ou, de maneira explicita, como os vários casos de estupro que acontecem diariamente. Dessa forma, segundo Dentz (2008), ao se tratar da objetificação da mulher, trata-se também do resultado desses constructos e como eles por vezes não só afetam, mas também distorcem, resultando na abstração da imagética corporal e no seu processo de atribuição de sentidos no que se constitui a subjetividade. Consequentemente, o corpo se torna objeto. E embora todo corpo possa ser objetificado em algum momento, pautas feministas trazem ao repertório de lutas, o tema da objetificação do corpo da mulher.

Em termos de representações segundo, Lourenço (2014), ao se pensar no que é um “corpo de mulher” vem no ideário do senso comum, quase que automaticamente, um manequim – com seios acentuados, cabelos longos, pernas torneadas, braços esguios, mãos bem cuidadas, entre outros aspectos; ao se pensar em seus atributos subjetivos logo se constrói uma imagem de delicadeza, sentimentalismo, fraqueza, de pessoa indefesa, emocionalmente instável, completamente capacitada para a maternidade e afazeres domésticos.

Para Boris (2007), as representações sociais são um “fenômeno complexo” e na dinâmica social se tornam guias das ações dos sujeitos e abarcam inúmeros elementos – sejam eles de cognição, ideológicos, normativos, de cunho biológico ou até mesmo crenças e valores – organizados categoricamente a fim de cunhar preceitos, ideias e ações referentes a um determinado grupo identitário.

A mulher em suas fases de desenvolvimento, no decorrer de sua vida, ouvirá muitas frases que tentam limitar suas ações, seus pensares, suas potencialidades como um todo, resumindo-a a um estereótipo de gênero elaborado por grupos dominantes e reforçados por todos – inclusive por algumas mulheres também, pois tais ideações machistas, apesar de partirem de um indivíduo, ao se integrarem no repertório cultural se cristalizam e em determinado momento passam a ser externos ao sujeito de modo que acabam por constituir tênues regras sociais a serem seguidas. E desde cedo essas regras intimistas ensinam e reafirmam a uma mulher o que é e como deve ser uma mulher (Boris, 2007).

Outro ponto que podemos destacar é o impacto da infertilidade do casal, Dr. Bacamarte e D. Evarista, levando-os a mobilização da ferida narcísica, afastamento da vida conjugal, vergonha social, estigma social da impossibilidade da parentalidade, a dedicação obsessiva e onipotente do Alienista na cura de pacientes enlouquecidos. Poderemos nos perguntar, de que loucura Dr. Bacamarte estava se referindo? Talvez projetando em todos os moradores da cidade de Itajaí a sua própria loucura (dor psíquica, luto e ferida narcísica) de não ter conseguido ser pai. Sua impotência e frustração frente a ciência que não conseguiu lograr sucesso para conseguir o que era imperioso em seu desejo como homem cumpridor das normas patriarcais da época e um respeitável médico com formação europeia.

Uma revisão da literatura sobre a infertilidade (Morice P. et. Al., 1995) e o sofrimento psicológico relacionado observa que seu impacto sobre o bem-estar psicológico dos casais tem sido objeto de atenção crescente nos últimos anos. Parece fora de dúvida que a infertilidade é uma experiência profundamente aflitiva para muitos casais. Os autores que pesquisaram o assunto deixaram concluir que pacientes inférteis apresentam dificuldades psicológicas complexas, que têm repercussão em vários aspectos de suas vidas sexual, afetiva, social e laboral. Embora as consequências psicológicas da infertilidade sejam evidentes, é menos claro que os distúrbios psicológicos podem afetar a fertilidade.

Nos últimos anos, o estudo dos aspectos emocionais da infertilidade vem sofrendo mudanças, como o conceito geral de infertilidade psicogênica, onde, com algumas sugestões, a angústia passou a ser vista como resultado e não como a causa da infertilidade.

Os autores psicanalíticos compreendem a infertilidade nas mulheres como reflexo do repúdio inconsciente da feminilidade, da maternidade e relacionadas às questões vinculadas aos conflitos na sexualidade. No entanto, menos de 5% dos casais inférteis carecem de causa física para a infertilidade, e esse número vem decrescendo à medida que o conhecimento médico avança. A relação entre estados psíquicos e funções fisiológicas é de enorme complexidade, e não há uma relação causal simples e linear. É importante considerarmos, também, os conflitos presentes nos casais que os concebem naturalmente, pois talvez conflitos semelhantes sejam distribuídos (Morice P. et. Al., 1995).

A medicina, ao permitir um controle quase total sobre a concepção, faz com que o filho, geralmente, não chegue mais de surpresa. Ter uma criança significa o atendimento de um desejo consciente e de uma decisão tomada e assumida. Se a concepção for tardia, o fracasso se tornar intolerável, e esses pacientes passam a solicitar ao médico uma ação rápida, que reviva o corpo refratário.

As novas tecnologias de reprodução estão modificando os conceitos de infertilidade, principalmente no que se refere à compreensão da infertilidade psicogênica. Atualmente, a literatura psicanalítica tem buscado a compreensão do sentido da infertilidade e não da sua causalidade. Assumimos que estamos em terreno mais firme ao examinarmos as consequências da infertilidade e não as suas causas. Mesmo os psicanalistas que compartilham o predomínio da infertilidade psicogênica concordam que o intenso estresse da infertilidade pode promover regressões para estágios anteriores do desenvolvimento psíquico. A infertilidade pode evocar fantasias poderosas e assustadoras, atingindo a personalidade como um todo (Apfel, 2002).

Conflitos psicológicos envolvendo a infertilidade alcançam as camadas mais profundas do psiquismo, invadem o espaço interpessoal e sexual do casal e irradiam-se na vida sociocultural, laboral e na definição de família. Conflitos antigos são revividos, podendo desafiar a integridade conjugal. A dor do casal pode ser agravada pelos procedimentos invasivos e pelos dilemas éticos e religiosos criados pelas recentes oportunidades tecnológicas (Apfel, 2002).

Lidar com a infertilidade é como lidar com doenças clínicas graves. O desespero de lidar com a infertilidade assemelha-se ao desespero de lidar com eventos devastadores, tais como a perda de um parceiro. A perda da capacidade reprodutiva promove um abalo específico na economia narcísica, justamente por ser um importante referencial identificatório de feminilidade e masculinidade. Para a totalidade dos seres humanos, a impossibilidade de procriar é profundamente vívida como uma ferida narcísica, mas, dentro de certas sociedades, um sexo ou o outro é mais protegido (Apfel, 2002).

Podemos examinar neste trecho do Capítulo I – De Como Itaguaí Ganhou Uma Casa De Orates, tão bem descrito por Machado de Assis, encontramos a saída onipotente com defesas maníacas de grandiosidade, apresentadas no comportamento do Dr. Simão Bacamarte diante da impossibilidade de ser pai. Supomos uma tentativa maníaca de reparar sua vergonha, dor narcísica masculina, luto, através da atitude em ser respeitado como médico digno, confiando que a ciência possa devolver-lhe seus “louros imarcescíveis”.

“Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção, —o recanto psíquico, o exame de patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal explorada, ou quase inexplorada. Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia cobrir-se de “louros imarcescíveis”, — expressão usada por ele mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos sabedores.

—A saúde da alma, bradou ele, é a ocupação mais digna do médico.” (Assis, 2004, p. 1)

Para alguns autores, os casais que após um período de muitos anos, durante os quais têm esperança de conceber, terão de se confrontar com o fato de que um filho não se tornará realidade. Dessa forma, experimentam o luto, a perda e o sentimento de pesar pela impossibilidade de terem filhos. Mesmo não se defrontando com uma morte real, as pessoas inférteis atravessam um processo de luto por um filho que deixou de ser uma realidade possível. Apenas 4% dos casais permaneceram involuntariamente sem filhos e eventualmente experimentaram apoio social insuficiente (Morice P. et. Al., 1995).

A percepção do estigma relacionado à infertilidade e o padrão como isso é revelado à sociedade pode ter influência no grau de bem-estar físico, emocional e social do casal, mas esses fatores recebem também pouca atenção no contexto atualmente.

As intervenções atuais psicossociais na infertilidade mostraram efeitos positivos, não se constatando nenhum efeito negativo no bem-estar das pessoas inférteis no tratamento. Sentimentos de ansiedade, tensão e preocupação quase sempre apresentam mudanças positivas. Todas essas questões têm repercussões na vida dos envolvidos e no próprio tratamento e discussões de uma abordagem ampla, onde as questões subjetivas também podem ser levadas em consideração e equacionadas.

Neste trecho do Capítulo I – De Como Itaguaí Ganhou Uma Casa De Orates, podemos pensar que Machado de Assis, relata o contexto social da loucura na época. As condições das pessoas em sofrimento mental eram trancafiadas, vagam nas ruas, não tinham tratamentos e morriam a sua sorte. Porém, traz na personagem do Padre Lopes, uma advertência de que algo não está bem com o comportamento do Dr. Bacamarte, bem como sua ideia de criar um local para doentes mentais.

A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é arguida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia construir todos os loucos de Itaguaí e das demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a Câmara lhe daria quando a família do enfermo o não pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a vila, e encontrou grande resistência, tão certo é que dificilmente se desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. A ideia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma sintoma de demência, e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do médico.

—Olhe, D. Evarista, disse-lhe o Padre Lopes, vigário do lugar, veja se seu marido dá um passeio ao Rio de Janeiro. Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo.” (Assis, 2004, p. 1 e 2)

Vejamos no trecho do Capítulo I – De Como Itaguaí Ganhou Uma Casa De Orates, as manipulações de cunho religioso e ardiloso do Dr. Bacamarte, a corrupção de impostos desmedidos para custear o projeto da Casa Verde, além do uso de ironias no conto, perfeitamente descritas por Machado de Assis, neste trecho da obra.

Aparentemente ninguém discordaria de programas – das mais variadas ordens – cujos objetivos seriam minorar e/ou resolver problemas que afetam grande número de pessoas e, consequentemente, o país. Pois bem, essa imagem “generosa” das “políticas públicas”, em que todos ganham e ninguém perde ou discorda – a referida “naturalização” –, é não apenas falsa como representa verdadeira armadilha à compreensão de seu significado, na medida em que encobre disputas de poder. Individualismo, consumismo, hedonismo, descrédito na ação política coletiva e nas doutrinas políticas, reforço da ideologia do self made man, ênfase no mundo privado (notadamente na carreira profissional e na circunscrição família, familiares e amizades da “vida social”) são algumas das características resultantes desse mundo atomizado, vigente em maior ou menor medida em todos os países, notadamente após a ascensão do neoliberalismo e o definhamento do socialismo soviético. A partir da “revolução” digital dos anos 1990, novas questões vêm sendo levantadas, uma vez que as comunicações estariam passando por profundas transformações, apercebidas intelectualmente, contudo, de modo distinto: para alguns setores são vistas como potencialmente democráticas e, para outros, como controladoras e alienantes.

“Dali foi à Câmara, onde os vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a com tanta eloquência, que a maioria resolveu autorizá-lo ao que pedira, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o tratamento, alojamento e mantimento dos doidos pobres. A matéria do imposto não foi fácil achá-la; tudo estava tributado em Itaguaí. Depois de longos estudos, assentou-se em permitir o uso de dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um coche mortuário pagaria dois tostões à Câmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem as horas decorridas entre a do falecimento e a da última bênção na sepultura. O escrivão perdeu-se nos cálculos aritméticos do rendimento possível da nova taxa; e um dos vereadores, que não acreditava na empresa do médico, pediu que se relevasse o escrivão de um trabalho inútil.

— Os cálculos não são precisos, disse ele, porque o Dr. Bacamarte não arranja nada. Quem é que viu agora meter todos os doidos dentro da mesma casa?

Enganava-se o digno magistrado; o médico arranjou tudo. Uma vez empossado da licença começou logo a construir a casa. Era na Rua Nova, a mais bela rua de Itaguaí naquele tempo, tinha cinquenta janelas por lado, um pátio no centro, e numerosos cubículos para os hóspedes. Como fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé declara veneráveis os doidos, pela consideração de que Alá lhes tira o juízo para que não pequem. A ideia pareceu-lhe bonita e profunda, e ele a fez gravar no frontispício da casa; mas, como tinha medo ao vigário, e por tabela ao bispo, atribuiu o pensamento a Benedito VIII, merecendo com essa fraude aliás pia, que o Padre Lopes lhe contasse, ao almoço, a vida daquele pontífice eminente.” (Assis, 2004, p. 1)

Neste trecho do Capítulo I – De Como Itaguaí Ganhou Uma Casa De Orates, vamos perceber a mudança radical do comportamento e apresentação dos personagens Dr. Bacamarte e D. Evarista; parecem estar num estado maníaco de euforia, uma tentativa de redenção as suas feridas narcísicas, melancolia, luto, vergonha, parecem desejar o retorno a inserção da sociedade de Itaguaí, como pessoas admiráveis, ilustres, ricas, caridosas e poderosas. Ao ponto de desejarem serem invejados pelos cidadãos.

“A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas, que pela primeira vez apareciam verdes em Itaguaí. Inaugurou-se com imensa pompa; de todas as vilas e povoações próximas, e até remotas, e da própria cidade do Rio de Janeiro, correu gente para assistir às cerimônias, que duraram sete dias. Muitos dementes já estavam recolhidos; e os parentes tiveram ocasião de ver o carinho paternal e a caridade cristã com que eles iam ser tratados. D. Evarista, contentíssima com a glória do marido, vestira-se luxuosamente, cobriu-se de joias, flores e sedas. Ela foi uma verdadeira rainha naqueles dias memoráveis; ninguém deixou de ir visitá-la duas e três vezes, apesar dos costumes caseiros e recatados do século, e não só a cortejavam como a louvavam; porquanto, —e este fato é um documento altamente honroso para a sociedade do tempo, —porquanto viam nela a feliz esposa de um alto espírito, de um varão ilustre, e, se lhe tinham inveja, era a santa e nobre inveja dos admiradores.

Ao cabo de sete dias expiraram as festas públicas; Itaguaí, tinha finalmente uma casa de orates.” (Assis, 2004, p. 1)

A Mania, vocábulo de origem grega – que atravessou a história do ocidente e sobreviveu às mais diversas transformações semânticas – ainda produz um fascínio e um pavor inesgotáveis. O fascínio diz respeito à suposta onipotência ou independência do mundo humano que o sujeito em estado maníaco seria capaz de experimentar. Mesmo em ambientes, a nosso ver, desfavoráveis, alguns de nós se sentem ou se comportam como se a redenção estivesse próxima, como se não houvesse limites para a ação, como se o amor do outro fosse uma garantia, como se o mundo estivesse tão próximo de si que este sujeito parece adivinhar todas as suas necessidades.

A energia inextinguível, proatividade permanente, sentimento estável de urgência para agir e abertura súbita de canais criativos são algumas das expressões usadas para qualificar o universo da ação em tais episódios maníacos. Parece que este estado emocional faz pensarmos nos comportamentos e na ideia do projeto da Casa Verde, do personagem Dr. Bacamarte. A alegria irrefreável, elação, euforia e vivência de beatitude são algumas das expressões usadas para qualificar seus estados mentais maníacos. Nesta descrição podemos pensar que tanto D. Evarista e Dr. Bacamarte, estejam envolvidos nesse desejo de serem novamente amados pelas pessoas da cidade e se apresentam como um casal perfeito, cristãos e um homem paternal caridoso.

Mas, poderemos observar que por outro lado, há um paulatino desligamento do ambiente relacional no Dr. Bacamarte, já que se manifesta uma autossuficiência e o outro torna-se, quando muito, uma plateia. O mundo com o qual o sujeito maníaco parece ter uma intimidade radiante não é o mesmo mundo que supõe habitar.

Com a progressão dessa epifania aparentemente alegre, logo percebemos na personagem do Dr. Bacamarte um comportamento obsessivo e cartesiano, que este subverte o terreno em que a duras penas nos socializamos. E este sujeito sempre paga um alto preço por explorar alguns limiares de nossa humanidade e de nossa civilização. Vamos observar no Capítulo II – Torrentes de Loucos.

“(…) começou um estudo aturado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos enfermos, profissão, costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família, uma devassa, enfim, como a não faria o mais atilado corregedor. E cada dia notava uma observação nova, uma descoberta interessante, um fenômeno extraordinário. Ao mesmo tempo estudava o melhor regímen, as substâncias medicamentosas, os meios curativos e os meios paliativos, não só os que vinham nos seus amados árabes, como os que ele mesmo descobria, à força de sagacidade e paciência. Ora, todo esse trabalho levava-lhe o melhor e o mais do tempo. Mal dormia e mal comia; e, ainda comendo, era como se trabalhasse, porque ora interrogava um texto antigo, ora ruminava uma questão, e ia muitas vezes de um cabo a outro do jantar sem dizer uma só palavra a D. Evarista.” (Assis, 2004, p. 3)

A admiração e ódio, inveja e intolerância, sonho e pesadelo, são alguns dos elementos que traduzem o nosso fascínio e o nosso pavor de comportamentos maníacos. A irritabilidade, estágio incontornável na mania, e depois a depressão é a encruzilhada, onde ocorre o encontro marcado com a dor das profundezas da melancolia, que por consequência muitas vezes levam ao suicídio. Há um desinvestimento da vida pulsional (Eros) e um retorno ao princípio do prazer (Tânatos) levando a alienação subjetiva.

Neste trecho do Capítulo III – Deus sabe o que faz! podemos verificar o personagem da D. Evarista sucumbir física, emocionante ao afastamento e indiferença do esposo Dr. Bacamarte. Afloram sentimentos de solidão, melancolia, luto e sentimento de abandono. Encontramos uma posição de mulher escrava-submissa a autoridade do marido. Hoje descreveríamos como uma cena de violência psicológica e dependência emocional da personagem D. Evarista.

“Ilustre dama, no fim de dois meses, achou-se a mais desgraçada das mulheres; caiu em profunda melancolia, ficou amarela, magra, comia pouco e suspirava a cada canto. Não ousava fazer-lhe nenhuma queixa ou reproche, porque respeitava nele o seu marido e senhor, mas padecia calada, e definhava a olhos vistos. Um dia, ao jantar, como lhe perguntasse o marido o que é que tinha, respondeu tristemente que nada; depois atreveu-se um pouco, e foi ao ponto de dizer que se considerava tão viúva como dantes. E acrescentou:

—Quem diria nunca que meia dúzia de lunáticos…

Não acabou a frase; ou antes, acabou-a levantando os olhos ao teto, —os olhos, que eram a sua feição mais insinuante, — negros, grandes, lavados de uma luz úmida, como os da aurora. Quanto ao gesto, era o mesmo que empregara no dia em que Simão Bacamarte a pediu em casamento. Não dizem as crônicas se D. Evarista brandiu aquela arma com o perverso intuito de degolar de uma vez a ciência, ou, pelo menos, decepar-lhe as mãos; mas a conjetura é verossímil. Em todo caso, o alienista não lhe atribuiu intenção. E não se irritou o grande homem, não ficou sequer consternado. O metal de seus olhos não deixou de ser o mesmo metal, duro, liso, eterno, nem a menor prega veio quebrar a superfície da fronte quieta como a água de Botafogo. Talvez um sorriso lhe tenha descerrado os lábios, por entre os quais filtrou esta palavra macia como o óleo do Cântico:

—Consinto que vás dar um passeio ao Rio de Janeiro.” (Assis, 2004, p. 4)

Observamos neste trecho do Capítulo III – Deus sabe o que faz! o resultado desse mal encontro é representado pela luta do maníaco em reencontrar um mundo complacente que ele chegou a sentir como real e a resposta do ambiente em suprimir qualquer vestígio desse universo idílico. O humor exaltado e irritadiço é uma marca desta “topada”. Dr. Bacamarte precisa justificar sua opulência através da riqueza que adquiriu ao tratar os lunáticos e assim conseguir afastar D. Evarista de sua convivência, pois parecia que ela não lhe tinha mais serventia como uma mulher objetificada, que o frustrou em sua empreitada da paternidade em ter filhos.

“D. Evarista sentiu faltar-lhe o chão debaixo dos pés. Nunca dos nuncas vira o Rio de Janeiro, que posto não fosse sequer uma pálida sombra do que hoje é, todavia era alguma coisa mais do que Itaguaí, Ver o Rio de Janeiro, para ela, equivalia ao sonho do hebreu cativo. Agora, principalmente, que o marido assentara de vez naquela povoação interior, agora é que ela perdera as últimas esperanças de respirar os ares da nossa boa cidade; e justamente agora é que ele a convidava a realizar os seus desejos de menina e moça. Evarista não pôde dissimular o gosto de semelhante proposta. Simão Bacamarte pagou-lhe na mão e sorriu, —um sorriso tanto ou quanto filosófico, além de conjugal, em que parecia traduzir-se este pensamento:

— “Não há remédio certo para as dores da alma; esta senhora definha, porque lhe parece que a não amo; dou-lhe o Rio de Janeiro, e consola-se”. E porque era homem estudioso tomou nota da observação.

Mas um dardo atravessou o coração de D. Evarista. Conteve-se, entretanto; limitou-se a dizer ao marido que, se ele não ia, ela não iria também, porque não havia de meter-se sozinha pelas estradas.

—Irá com sua tia, redarguiu o alienista.

Note-se que D. Evarista tinha pensado nisso mesmo; mas não quisera pedi-lo nem o insinuar, em primeiro lugar porque seria impor grandes despesas ao marido, em segundo lugar porque era melhor, mais metódico e racional que a proposta viesse dele.

—Oh! mas o dinheiro que será preciso gastar suspirou D. Evarista sem convicção.

—Que importa? Temos ganho muito, disse o marido. Ainda ontem o escriturário prestou-me contas. Queres ver?

E levou-a aos livros. D. Evarista ficou deslumbrada. Era uma Via-Láctea de algarismos. E depois levou-a às arcas, onde estava o dinheiro.

Deus! eram montes de ouro, eram mil cruzados sobre mil cruzados, dobrões sobre dobrões; era a opulência.

Enquanto ela comia o ouro com os seus olhos negros, o alienista fitava-a, e dizia-lhe ao ouvido com a mais pérfida das alusões:

—Quem diria que meia dúzia de lunáticos…

D. Evarista compreendeu, sorriu e respondeu com muita resignação:

—Deus sabe o que faz!” (Assis, 2004, p. 5)

Neste trecho do Capítulo III – Deus sabe o que faz! Podemos supor que o estado de mania seria o destino relacionado com os impasses do enlutamento para o estado psíquico melancólico do Alienista. Portanto, a defesa maníaca selou a ferida narcísica do Dr. Bacamarte, que faz com que o objeto se imponha e sinta uma grandiosidade do eu. Seja exigindo sua submissão, seja suportando um aparente triunfo, que sempre se mostra como uma vitória sobre a vida cotidiana; há um desligamento do investimento libidinal no outro, não há mais consideração e afeto. Vejamos isso neste trecho.

“(…) As despedidas foram tristes para todos, menos para o alienista. Conquanto as lágrimas de D. Evarista fossem abundantes e sinceras, não chegaram a abalá-lo. Homem de ciência, e só de ciência, nada o consternava fora da ciência; e se alguma coisa o preocupava naquela ocasião, se ele deixava correr pela multidão um olhar inquieto e policial, não era outra coisa mais do que a ideia de que algum demente podia achar-se ali misturado com a gente de juízo.

—Adeus! soluçaram enfim as damas e o boticário.

E partiu a comitiva. Crispim Soares, ao tornar a casa, trazia os olhos entre as duas orelhas da besta ruana em que vinha montado; Simão Bacamarte alongava os seus pelo horizonte adiante, deixando ao cavalo a responsabilidade do regresso. Imagem vivaz do gênio e do vulgo! Um fita o presente, com todas as suas lágrimas e saudades, outro devassa o futuro com todas as suas auroras.” (Assis, 2004, p. 5)

Nestes trechos do Capítulo IV – Uma Teoria Nova e do Capítulo V – O Terror, ao descrever a diferença entre a razão e a loucura, Simão Bacamartes, afirmava que a razão é o equilíbrio de todas as faculdades; fora dela, seria insânia, insânia e só insânia.

“(…) Suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia.

O Vigário Lopes a quem ele confiou a nova teoria, declarou lisamente que não chegava a entendê-la, que era uma obra absurda, e, se não era absurda, era de tal modo colossal que não merecia princípio de execução.

—Com a definição atual, que é a de todos os tempos, acrescentou, a loucura e a razão estão perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra começa. Para que transpor a cerca?

Sobre o lábio fino e discreto do alienista roçou a vaga sombra de uma intenção de riso, em que o desdém vinha casado à comiseração; mas nenhuma palavra saiu de suas egrégias entranhas.

A ciência contentou-se em estender a mão à teologia, — com tal segurança, que a teologia não soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itaguaí e o universo ficavam à beira de uma revolução.” (Assis, 2004, p. 6)

O primeiro paciente internado na Casa Verde chamava-se Costa, declarado insano após ter perdido a fortuna que um tio havia deixado e que antes de morrer declarou que a fortuna deixada o sustentaria até o fim do mundo. Em pouco tempo, Costa, por ter fornecido quantos empréstimos lhe pedissem, ficou na miséria. Dr. Bacamartes, ao ver tamanha indignação, recolheu-o à Casa Verde. Sua prima, que foi vê-lo e que aproveitou para interceder por ele, teve o mesmo destino, passou a residir na Casa Verde. Depois Matheus, que após enriquecer, construir uma linda casa e admirá-la profundamente, passando seus dias a apreciá-la e a exibir sua riqueza o que o tornava invejado em Itaguaí.

Neste caso, no campo de visão científica do Dr. Simão, apegar-se aos bens materiais e ostentar luxo e riqueza compreendia indício de loucura visto que feria as normas comportamentais da sociedade de Itaguaí. A loucura então não é diagnosticada por si mesma, mas está sempre relacionada aos comportamentos que ferem as normas sociais e políticas locais, podendo-se ainda dizer que a loucura está associada aos defeitos do homem e desta forma fica evidente a questão da falta de ética científica, que se utiliza do poder que a ciência confere àqueles que à época faziam o diagnóstico de loucura.

Aqui podemos identificar uma forte crítica de Machado de Assis aos primeiros alienistas que escreveram os primeiros manuais que definiam os comportamentos normais e patológicos. Esses manuais tornaram-se referência sobre quem deve ser considerado anormal ou normal o que criou uma identidade para o doente mental. Atualmente podemos citar o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM e Classificação Internacional de Doença – CID.

Machado de Assis se utiliza de forte crítica às formas de tratamento que se utilizava à época e ao cientificismo. O autor está além de seu século, não apenas por questionar a concepção racionalista e positivista da ciência, mas por questionar o poder de todo e qualquer saber que pretenda apresentar-se como rigorosamente objetivo e com pretensões universais.

“Costa era um dos cidadãos mais estimados de Itaguaí. Herdara quatrocentos mil cruzados em boa moeda de El-rei Dom João V, dinheiro cuja renda bastava, segundo lhe declarou o tio no testamento, para viver “até o fim do mundo”. Tão depressa recolheu a herança, como entrou a dividi-la em empréstimos, sem usura, mil cruzados a um, dois mil a outro, trezentos a este, oitocentos àquele, a tal ponto que, no fim de cinco anos, estava sem nada. Se a miséria viesse de chofre, o pasmo de Itaguaí seria enorme; mas veio devagar; ele foi passando da opulência à abastança, da abastança à mediania, da mediania à pobreza, da pobreza à miséria, gradualmente. (…)”

(…) “Dr. Bacamarte espetara na pobre senhora um par de olhos agudos como punhais. Quando ela acabou, estendeu-lhe a mão polidamente, como se o fizesse à própria esposa do vice-rei, e convidou-a a ir falar ao primo. A mísera acreditou; ele levou-a à Casa Verde e encerrou-a na galeria dos alucinados.” (Assis, 2004, p. 7)

Diante da indignação da população de Itaguaí, o personagem Porfírio se posiciona que, apesar de não entender nada de ciência, não compreendia o porquê de tantos homens em quem suponha-se juízo estarem reclusos por demência, quem então poderia afirmar que o alienado não é o alienista?

Machado de Assis conclama que Dr. Simão Bacamartes, pelo seu critério de insanidade mental, tornava a todos passíveis de internação. As teorias de conspiração começaram a se espalhar na cidade de Itajaí.

“—A Casa Verde é um cárcere privado, disse um médico sem clínica.

Nunca uma opinião pegou e grassou tão rapidamente. Cárcere privado: eis o que se repetia de norte a sul e de leste a oeste de Itaguaí, —a medo, é verdade, porque durante a semana que se seguiu à captura do pobre Mateus, vinte e tantas pessoas, —duas ou três de consideração, —foram recolhidas à Casa Verde. O alienista dizia que só eram admitidos os casos patológicos, mas pouca gente lhe dava crédito. Sucediam-se as versões populares. Vingança, cobiça de dinheiro, castigo de Deus, monomania do próprio médico, plano secreto do Rio de Janeiro com o fim de destruir em Itaguaí qualquer gérmen de prosperidade que viesse a brotar, arvorecer, florir, com desdouro e míngua daquela cidade, mil outras explicações, que não explicavam nada, tal era o produto diário da imaginação pública.” (Assis, 2004, p. 10)

Do Alienista de Machado de Assis aos dias atuais, repetimos o fenômeno machadiano, encarnado na personagem do Dr. Simão Bacamartes, quem seriam hoje os passíveis de internação compulsória? Especialmente os usuários de drogas. A mídia retrata-nos medidas públicas, estabelecidas em alguns estados, de internação compulsória, por vezes involuntária, de dependentes de crack e outras drogas. O uso de drogas engendra uma multicausalidade, implica uma transversalidade de intervenções e ações, partindo da premissa que é uma questão biopsicossocial, e que requer reflexões multidisciplinares. Ponderamos que a internação compulsória é um recurso extremo, os usuários necessitam de políticas públicas de boa qualidade e de consideração digna.

Desta forma pode-se compreender que o poder psiquiátrico a que se referia Machado de Assis em o Alienista é um poder que realiza uma submissão dos pacientes, tendo como instrumentos principais uma vontade e um saber, que neste caso são a vontade e o saber do médico, reconhecidos como superiores à vontade e ao saber daqueles que se sujeitam a um mecanismo de poder e disciplina instalado no interior de um hospício.

No trecho do Capítulo VI – A Rebelião, podemos considerar que a internação no hospital psiquiátrico do século XIX seria uma tentativa de reeducação do sujeito sob regulamentos e olhares rigorosos, desde o desvio até a recuperação. Ou seja, a loucura, que durante o classicismo era o mal e se avizinhava da morte, foi “compreendida”por uma psiquiatria redentora deste mal incubado no interior do homem. No entanto, se o louco permanecia um cidadão proscrito, é porque o mal não fora expiado. Ao acumular loucos em série no domínio do asilo, pode-se pensar que a psiquiatria apenas reinventou o mal da loucura, dando-lhe nova roupagem, base científica e um método. A cura dos alienados significaria a extirpação de um mal que, se já começava a extrapolar as noções maniqueístas católicas, ainda antagonizava com a noção de bem-estar social estabelecida pela moral burguesa oitocentista que adentraria o século XX (Foucault, 2005).

O autor Machado de Assis preserva um distanciamento, contextualizando a história no período colonial, ou seja, antes mesmo da inauguração do Hospital Nacional dos Alienados, o primeiro hospício oficial do Brasil, criado por decreto do Imperador Pedro II em 1841 e inaugurado em 1852 com seu nome (levou o nome de Pedro II até 1890). Isto significa que em 1881, no ano da publicação de “O Alienista”, já existia no Brasil todo um complexo manicomial em torno do isolamento da loucura tal qual prescreveu Pinel, coordenado por autoridades no assunto, mas Machado optou por desfocar essa realidade, recuar a trama. Uma hipótese: desta forma, conferia a Simão Bacamarte o poder verdadeiramente absoluto, sem um alienista sequer no país apto a questioná-lo. Mas no conto do O Alienista, aconteceu a revolução dos Canjicas e a entrada da tropa para a derrocada da Casa Verde.

A “bastilha da razão humana” – referência a revolução francesa para a Casa Verde; Porfírio lidera uma revolta, que ficou conhecida com a revolta dos canjicas (o apelido do barbeiro era canjica). Eles rumam a casa verde urrando “morte ao alienista!” e exigindo o fim casa verde, com ameaças de até mesmo atear fogo no local. Dr. Bacamarte aparece na varanda, diz algumas palavras e ousadamente simplesmente dá as costas a multidão ali reunida, desprezando totalmente os manifestantes. Porfírio encontra ali, sua chance de se tornar o defensor do povo, de se tornar o rei de Itaguaí.

“Entretanto, a arruaça crescia. Já não eram trinta, mas trezentas pessoas que acompanhavam o barbeiro, cuja alcunha familiar deve ser mencionada, porque ela deu o nome à revolta; chamavam-lhe o Canjica — e o movimento ficou célebre com o nome de revolta dos Canjicas. A ação podia ser restrita, — visto que muita gente, ou por medo, ou por hábitos de educação, não descia à rua; mas o sentimento era unânime, ou quase unânime, e os trezentos que caminhavam para a Casa Verde, — dada a diferença de Paris a Itaguaí, —podiam ser comparados aos que tomaram a Bastilha.

(…) No geral, as famílias abençoavam o nome daquele que ia enfim libertar Itaguaí da Casa Verde e do terrível Simão Bacamarte. (Assis, 2004, p. 13)

Mas, no trecho do Capítulo VII – O Inesperado, chegam os dragões (força policial) e a população encorajada por Porfírio não renuncia a sua luta e continua firme diante dos dragões, inicia-se ali uma guerra entre ambos, que dura pouco, em vista de que alguns dragões passaram para o lado dos moradores da cidade de Itaguaí. O povo de Itaguaí deve a isso sua vitória, após o ocorrido rumaram a câmara, onde Porfírio assume o governo da vila. A revolta se acalma, devida confiança e estima de que Porfírio no governo daria fim a casa verde. Porém, nos deparamos com a virada da história, quando Dr. Simão Bacamarte propõe dialogar com todos.

“—Meus senhores, a ciência é coisa séria, e merece ser tratada com seriedade. Não dou razão dos meus atos de alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus. Se quereis emendar a administração da Casa Verde, estou pronto a ouvir-vos; mas se exigis que me negue a mim mesmo, não ganhareis nada. Poderia convidar alguns de vós, em comissão dos outros, a vir ver comigo os loucos reclusos; mas não o faço, porque seria dar-vos razão do meu sistema, o que não farei a leigos nem a rebeldes.” (Assis, 2004, p. 14)

Parece que o alienista está, enfim, derrotado. Porfírio, entretanto, reconhece a supremacia da ciência e impede a demolição da Casa Verde, sob a alegação:

 “(…) pode entrar no ânimo do governo eliminar a loucura? Não. (…) A matéria é da ciência. A ciência está acima do governo (!).” (Assis, 2004, p. 15).

No trecho do Capítulo VIII – As Angústias do Boticário, o boticário fica sabendo que Porfírio está indo pessoalmente falar com o alienista, e logo dá a causa do amigo como vencida, ele se vê dividido entre prostrar-se corajosamente ao lado do amigo ou aderir ao novo governo de Porfírio, temendo a influência do barbeiro, e o que poderia acontecer a ele como amigo e apoiador do Dr. Bacamarte, ele se dirige a câmara para aderir a causa. Chegando lá, descobre que o barbeiro está na casa verde.

“Vinte e quatro horas depois dos sucessos narrados no capítulo anterior, o barbeiro saiu do palácio do governo, —foi a denominação dada à casa da Câmara, —com dois ajudantes-de-ordens, e dirigiu-se à residência de Simão Bacamarte. Não ignorava ele que era mais decoroso ao governo mandá-lo chamar; o receio, porém, de que o alienista não obedecesse, obrigou-o a parecer tolerante e moderado.

Não descrevo o terror do boticário ao ouvir dizer que o barbeiro ia à casa do alienista. — “Vai prendê-lo”, pensou ele. E redobraram-lhe as angústias. Com efeito, a tortura moral do boticário naqueles dias de revolução excede a toda a descrição possível. Nunca um homem se achou em mais apertado lance: —a privança do alienista chamava-o ao lado deste, a vitória do barbeiro atraía-o ao barbeiro. Já a simples notícia da sublevação tinha-lhe sacudido fortemente a alma, porque ele sabia a unanimidade do ódio ao alienista; mas a vitória final foi também o golpe final.” (Assis, 2004, p. 17).

No trecho do Capítulo IX – Dois Lindos Casos, Porfírio, o defensor da população e o homem que liderou uma revolta cujo intuito era destruir a casa verde, ao falar diretamente e particularmente com o alienista, pede para que apenas alguns loucos (casos menores) sejam soltos em piedade a população. Bacamarte fica surpreso, e percebe imediatamente um caso de doença cerebral a qual chamou de duplicidade.

(…) —Onze mortos e vinte e cinco feridos, repetiu o alienista depois de acompanhar o barbeiro até a porta. Eis aí dois lindos casos de doença cerebral. Os sintomas de duplicidade e descaramento deste barbeiro são positivos. Quanto à toleima dos que o aclamaram não é preciso outra prova além dos onze mortos e vinte e cinco feridos.

—Dois lindos casos! (…) (Assis, 2004, p. 18).

Machado critica as questões éticas do ser humano na época em que estava vivendo, não só uma crítica ao estudo da psicologia humana, como uma crítica ao governo e ao comportamento social da época também, o qual pela falta de conhecimento e entendimento, fomentava a instauração de poderes que oprimiam a sociedade. Podemos notar que Dr. Bacamarte, além de uma curiosidade fascinante pela ciência em busca de melhorias no campo da psicanálise, havia uma vaidade implícita em se tornar um dos primeiros e mais reconhecidos pesquisadores na área.

No trecho do Capítulo X – A Restauração, cinquenta apoiadores do novo governo são levados a casa verde, João Pina (outro barbeiro) espalha por Itaguaí que Porfírio está “vendido ao ouro de Simão Bacamarte” e logo a influência e apoio de Porfirio tem seu fim, João Pina assume o governo. Esse ponto do conto marca a influência máxima de Simão Bacamarte, quem ele quisesse que fosse levado a casa verde era levado, dentre eles o Porfírio, o boticário, até mesmo o próprio presidente, em uma coleta desenfreada. Evarista também é recolhida a casa verde, após passar dias em dúvida de qual colar usar em um baile, e ser encontrada de madrugada experimentando os dois colares em frente ao espelho.

(…) Daí em diante foi uma coleta desenfreada. Um homem não podia dar nascença ou curso à mais mentira do mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não fosse logo metido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé enfunado, ninguém escapava aos emissários do alienista. Ele respeitava as namoradas e não poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural e as segundas a um vício. Se um homem era avaro ou pródigo, ia do mesmo modo para a Casa Verde; daí a alegação de que não havia regra para a completa sanidade mental. (…) (Assis, 2004, p. 19).

Com base na análise sobre o contexto histórico da loucura, podemos ver que havia uma grande imposição dos cientistas sobre as questões comportamentais da época, pois Machado de Assis deixa clara sua crítica quanto às formas de definição da doença mental exercida, pelo de Dr. Bacamarte, e o quanto suas transições éticas influenciam muito em seus métodos de avaliação dos pacientes, sendo vista inicialmente não uma busca por definir os padrões de doença mental, mas sim de estudá-los. E a partir do poder que lhe foi cedido pelo parlamento e quando teve liberdade para atuar como pesquisador, passou a instituir suas normas comportamentais para definir quem de Itaguaí era doente mental.

No trecho do Capítulo XI – O Assombro de Itaguaí, o alienista resolve soltar todos os loucos da casa verde as ruas. Quatro quintos da população estava na casa verde, e teoricamente, a loucura afetaria a minoria da população, então reavaliando sua teoria, ele concluiu que a loucura seria o oposto, e que o desequilíbrio mental deveria ser considerado normal.

“E agora prepare-se o leitor para o mesmo assombro em que ficou a vila, ao saber um dia que os loucos da Casa Verde iam todos ser postos na rua.” (Assis, 2004, p. 20).

No trecho do Capítulo XII – O Final do §4º, D. Evarista quis separar-se do alienista, mas a dor de perdê-lo a fez mudar de ideia. Todos os loucos voltaram a executar os velhos hábitos, e as pessoas consideradas com o perfeito equilíbrio mental passaram a ser levadas a casa verde, após passar por uma série de interrogações, foram levados Padre Lopes, a mulher do boticário, o boticário, e o barbeiro Porfírio (após recusar pedidos da população por uma nova revolta a casa verde).

“Chegou o fim do prazo, a Câmara autorizou um prazo suplementar de seis meses para ensaio dos meios terapêuticos. O desfecho deste episódio da crônica itaguaiense é de tal ordem e tão inesperado, que merecia nada menos de dez capítulos de exposição; mas contento-me com um, que será o remate da narrativa, e um dos mais belos exemplos de convicção científica e abnegação humana.” (Assis, 2004, p. 23).

No último trecho do Capítulo XII– Plus Ultra! Ao cabo de cinco meses, todos os loucos haviam sido curados, eles eram libertos quando apresentavam alguma alteração de comportamento que fosse considerada desequilibrada. Ao refletir novamente sua teoria, Dr. Bacamarte percebe que ele não introduziu nenhuma faculdade no intelecto das pessoas que lá estavam, e que o desequilíbrio que apresentaram quando estavam curadas, esteve nelas desde o início, concluiu que elas eram desequilibradas assim como os outros que ele havia hospedado.

“Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a cabeça, juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Ato contínuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram que ficasse, que estava perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem sugestões nem lágrimas o detiveram um só instante.

—A questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu.

Reúno em mim mesmo a teoria e a prática.

—Simão! Simão! meu amor! dizia-lhe a esposa com o rosto lavado em lágrimas.

Mas o ilustre médico, com os olhos acesos da convicção científica, trancou os ouvidos à saudade da mulher, e brandamente a repeliu. Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessete meses, no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegam ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco, além dele, em Itaguaí, mas esta opinião, fundada em um boato que correu desde que o alienista expirou, não tem outra prova senão o boato; e boato duvidoso, pois é atribuído ao Padre Lopes, que com tanto fogo realçara as qualidades do grande homem. Seja como for, efetuou-se o enterro com muita pompa e rara solenidade.” (Assis, 2004, p.26)

Após refletir mais, Simão Bacamarte encontrou em si o perfeito equilíbrio mental e moral, chamou alguns amigos, os quais pudessem confirmar ou negar seu palpite, todos concordaram que o alienista era perfeitamente equilibrado. Em um misto de felicidade e tristeza, ele recolhe-se a casa verde em busca de sua própria cura. Entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo. Morreu dali a dezessete meses no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegam ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco além dele em Itaguaí.

Dessa forma, averígua-se que o personagem principal Dr. Simão Bacamarte passa por várias etapas até voltar ao marco zero, onde procura tentar entender a si mesmo e a filosofia adotada por Aristóteles sobre o que é ética, já que o alienista trata uma cidade inteira como louca, será que de fato o louco não se trata dele mesmo?

Sendo assim, Machado de Assis fecha sua história demonstrando que as questões éticas não podem ser racionalizadas e impostas como sendo algo único para todos, que a imposição de um comportamento correto deve levar em conta o indivíduo como único, o que representa o ideal de Foucault com o terceiro ciclo a Genealogia da Ética (Foucault, 2005, p. 156).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A narrativa do conto O Alienista se excede em exageros, ironias, sátiras quanto às situações e personagens, mas Machado de Assis não estava longe da realidade social da época e pode, através de seu texto, representar questões éticas que iriam além do seu tempo, com uma visão do que se tornaria o tratamento dos doentes mentais. O tom de sátira do autor no decorrer do conto é uma crítica aos moldes da época para o tratamento à loucura, ao comportamento social e ao cientificismo.

O conto de Machado de Assis revela um vínculo entre ciência e poder, com o qual o cientista se apodera do direito que cada um tem de dizer suas verdades e agir em sociedade, levando a parecer que há mais loucura nos indivíduos de Itaguaí, principalmente quando o Dr. Bacamarte racionaliza de forma intransigível as questões entre o que devem ser considerado razão e o que deve ser considerado loucura. A loucura então não é diagnosticada por si mesma, mas está sempre relacionada aos comportamentos que ferem as normas sociais e políticas locais. Pode-se ainda dizer que a loucura está associada aos defeitos do homem.

Desta forma fica evidente a questão da falta de ética científica que se utiliza do poder que a ciência confere àqueles que à época faziam o diagnóstico de loucura. Aqui podemos identificar uma forte crítica de Machado de Assis aos primeiros alienistas que escreveram os primeiros manuais que definiam os comportamentos normais e patológicos. Esses manuais tornaram-se referência sobre quem deve ser considerado anormal ou normal criando uma identidade para o doente mental.

Assim, não é ao acaso que o diagnóstico psiquiátrico ganhe cada vez mais contornos totalizantes na contemporaneidade. O maior exemplo disso é a expansão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM, organizado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA), em sua primeira edição, de 1952, descrevia e classificava 182 transtornos. Após 42 anos, já em sua quarta edição, continha 63% a mais de categorias diagnósticas. Em janeiro de 2023, lançado o DSM-5 – TR (revisado), tem aproximadamente mais de 300 categorias diagnósticas. Tal crescimento se deu pela segmentação das antigas classes diagnósticas em unidades cada vez menores e mais específicas, seguindo, evidentemente, a expansão da variedade farmacêutica que visa atender a demanda da saúde mental. Pois, como afirma Dunker (2015):

“(…) a flutuação de metáforas neuroquímicas e farmacológicas exige unidades conceituais e descritivas cada vez mais flexíveis e indeterminadas clinicamente e cada vez mais hipotéticas do ponto de vista etiológico para justificar a produção repetida de novas medicações (com mais eficácia, menos efeitos colaterais, maior poder de combinação com outras medicações). Isso permite fazer do mal-estar uma doença, inserindo-a em um circuito que vai da propaganda, da divulgação e do consumo de experiências de bem-estar até a aliança entre pesquisa universitária, laboratórios farmacêuticos e gestão da saúde mental.” Dunker (2015, p. 22-23)

Em janeiro de 2022, foi lançada a nova Classificação Internacional de Doenças – CID-11, que fornece uma linguagem comum que permite aos profissionais de saúde compartilharem informações padronizadas. É a base para identificar tendências e estatísticas de saúde em todo o mundo, contendo cerca de 17 mil códigos únicos para lesões, doenças e causas de morte, sustentados por mais de 120 mil termos codificáveis. Usando combinações de códigos, mais de 1,6 milhão de situações clínicas podem agora ser codificadas. Essa lógica diagnóstica de determinação da doença e do patológico traz como efeito o entendimento da experiência de cura enquanto um processo de eliminação da doença e retorno ao ideal de saúde, que, no neoliberalismo, não se restringe ao desaparecimento dos sintomas, mas engloba também a lógica do aprimoramento de si. Nesse sentido, a indústria farmacêutica transformou os pacientes em clientes por meio de investimentos ostensivos em marketing, e se interessa pela ideia de que cada vez mais pessoas se identifiquem enquanto necessitadas dos benefícios das medicações.

Assim, diante desse contexto, as mudanças tanto no DSM e na CID, passaram a eufemizar as classificações dos transtornos, de modo que os sujeitos possam se identificar sem estigmatização; também ampliaram excessivamente os critérios diagnósticos, patologizando esferas da vida anteriormente não patologizadas, além de estabelecer um diagnóstico pautado apenas nos sintomas, mas agora organizados em formato de lista. Ademais, a hipervalorização do desempenho, característica da racionalidade neoliberal, fez com que a psiquiatria deixasse de ter uma função exclusivamente terapêutica e passasse a seguir os paradigmas da maximização dos lucros.

Se vivemos em uma sociedade em que o valor do sujeito é medido pelo seu desempenho, pela exposição da imagem nas mídias sociais (sociedade do espetáculo e hedonista), além de cumprir um ideal idealizado e fantasioso, se exige ser o melhor em todas as áreas de sua vida e muito feliz. Por consequência, os laços grupais foram dissolvidos na lógica da competitividade; as relações, profissionais e pessoais precisam seguir a máxima do lucro; do imediatismo, a gramática diagnóstica se ramificou até o ponto de incluir todas as pessoas a algum tipo de transtorno, ou pior: se não é preciso mais receber um diagnóstico para ser medicado, como não desejar uma pílula mágica que apague a insegurança, a falta de libido, o cansaço, o medo, o luto, a ansiedade e a distração?

Por fim, é perceptível como o diagnóstico pode oferecer amparo ao mal-estar subjetivo, na medida em que produz identificações e modos de socialização que muitas vezes pressupõem uma desresponsabilização do sujeito e uma alienação deste em relação ao discurso médico e à suposta certeza do especialista. Por outro lado, o diagnóstico pode também ser tomado como uma classificação normativa que enfraquece a potência transformadora que habita as experiências do sofrimento psíquico, barrando a busca do enfrentamento da responsabilidade do sofrimento subjetivo.

Tal hipótese tem imenso peso político, visto que uma razão diagnóstica totalizante corrobora para o esgotamento da capacidade de lidar com conflitos, contradições e reinvenções, o que, politicamente, gera um cenário de dificuldades para lidar com a alteridade e com as contingências próprias da vida que acabam por serem patologizadas. Eis a forma neoliberal do diagnóstico, servir como meio de individualizar os problemas concernentes à saúde mental.

Se alguém se sente depressivo e ansioso esse é um problema essencialmente individual, e não um problema estrutural da sociedade em que vivemos.

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WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade, Editora Imago, Rio Janeiro, 1988.

CINEMATOGRAFIA INSPIRADA NA OBRA O ALIENISTA

O filme “Azyllo Muito Louco”, realizado por Nelson Pereira dos Santos, em 1970, foi inspirado no clássico de Machado de Assis. Filmado em Parati, o filme chegou a ser incluído na seleção brasileira do Festival de Cannes no ano de 1970.

Minissérie “O Alienista e as Aventuras de um Barnabé”, produzida pela Rede Globo em 1993, quem dirigiu foi Guel Arraes e o elenco foi composto por Marco Nanini, Cláudio Corrêa e Castro, Antônio Calloni, Marisa Orth e Giulia Gam.


[1]Psicóloga Clínica e Escolar (UNISANTOS), Pós-Graduada em Psicopedagogia (UNISANTOS), Psicanalista Psicodinâmica e análise do Contemporâneo (PUCRS), Terapeuta Cognitiva Comportamental e proprietária do consultório particular Instituto Inclusão Brasil, São Vicente-SP. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4036950234432661 E-mail: marinaalmeida@institutoinclusaobrasil.com.br

Marina da Silveira Rodrigues Almeida – CRP 06/41029

Psicóloga Clínica, Escolar e Neuropsicóloga, Especialista em pessoas adultas Autistas (TEA), TDAH, Neurotípicos e Neurodiversos.

Psicanalista Psicodinâmica e Terapeuta Cognitiva Comportamental

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