“Façamos da interrupção um caminho novo. Da queda, um passo de dança, do medo uma escada, do sonho uma ponte, da procura um encontro!”
Fernando Sabino
Marina da Silveira Rodrigues Almeida[1]
1.INTRODUÇÃO
Neste artigo, exploramos as questões sobre os mitos, símbolos e espiritualidade na prática de peregrinação no Caminho de Santiago de Compostela. Nosso objetivo é compreender e registar quais os elementos ritualísticos, simbólicos, culturais, mitológicos, psicológicos e espirituais têm ligação com essa rota de peregrinação e com a história de São Tiago Maior também chamado de Santiago.
O Caminho de Santiago de Compostela é mundialmente conhecido e percorrido por milhares de pessoas vindas de todas as partes do globo há séculos. Em 1987 foi declarado pelo Conselho da Europa “Primeiro Itinerário Cultural Europeu” e em 2004 “Grande Itinerário Cultural”. Em 1993 reconhecido como Patrimônio da Humanidade pela Unesco.
Na verdade, o Caminho de Santiago não se trata de um único caminho, mas de uma rede de caminhos que possuem pontos tradicionais de início – mas não fixos e muito menos obrigatórios – que convergem à cidade espanhola de Santiago de Compostela, na Galicia, mais especificamente, no memorial do Apóstolo Tiago, preservado em sua monumental Catedral de Santiago de Compostela.
Como toda regra tem exceção, aqui a ressalva vai para o Caminho de Finisterra e Muxia, que ao invés de terminar em Santiago, parte de lá em direção ao Cabo de Finisterra e a Muxia – na Costa da Morte – limite ocidental da Europa, considerado o fim do mundo na antiguidade. O “epílogo do Caminho de Santiago”, portanto, pode ser visto como a continuação de uma das rotas que levam à capital galega. Atualmente é considerada a rota final dos peregrinos em Finisterra.
Segundo as estatísticas da Oficina de Acolhimento ao Peregrino, ainda que mais de 50% dos peregrinos escolham o Caminho Francês – rota mais popular e com a melhor infraestrutura de todas – apenas 9,5% começam sua jornada em seu ponto tradicional de início, na pequena cidade francesa de Saint-Jean-Pied-de-Port, nos Pirineus, uma cordilheira no sudoeste da Europa cujos montes formam a fronteira natural entre a França e a Espanha.
Existem muitas controvérsias sobre quais realmente são os seus rituais e símbolos do Caminho de Santiago de Compostela, mas neste artigo vamos abordar alguns dos seus principais significados.
Para contextualizarmos a jornada dos peregrinos, com seus rituais, lendas e símbolos no Caminho de Santiago de Compostela, utilizaremos o conceito de “Jornada do Herói”, descrito por Campbell (2007), em seus livros “O herói das mil faces” e “O poder do mito”. O autor, é um renomado mitologista e estudioso comparativo da religião, explora o papel dos mitos na vida humana, argumentando que os mitos são expressões universais da busca humana por significado, transcendência e conexão com o divino.
A Jornada do Herói Mitológico será o eixo central para pensarmos a peregrinação no Caminho de Santiago de Compostela, pois, segundo Campbell (2007):
“O herói, por conseguinte, é o homem ou mulher, que conseguiu vencer suas limitações históricas pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas. As visões, ideias e inspirações dessas pessoas vêm diretamente das fontes primárias da vida e do pensamento humanos”. (Campbell, 2007, p. 28)
Assim, é preciso pensar que o sujeito peregrino, é um sujeito-herói marcado pelo desejo de transformação, pela espiritualidade ou religiosidade, pela dor da perda, pelo distanciamento social, pelas dificuldades financeiras, pelo adoecimento emocional, pela aventura, ou simplesmente por desejar viajar e conhecer outros locais, dentre outros.
A psicanálise nos mostra que o simbolismo religioso tem uma forte conexão com o inconsciente humano ou coletivo.
O inconsciente coletivo é um conceito desenvolvido por Jung (2002) que sugere a existência de uma camada da psique humana compartilhada por toda a humanidade. Esta camada contém memórias e experiências herdadas, que se manifestam através de arquétipos e símbolos universais.
Os símbolos presentes nas religiões muitas vezes representam desejos, medos e conflitos internos que estão além do nosso conhecimento consciente. Por exemplo, a cruz é um símbolo importante no cristianismo. Para os psicanalistas, a cruz pode representar o desejo de redenção ou a necessidade de enfrentar o sofrimento para alcançar uma transformação pessoal. Esses significados simbólicos podem ser diferentes para cada indivíduo, dependendo de sua história pessoal e contextos culturais.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1. CONTEXTUALIZAÇÃO DA JORNADA DO HERÓI NO CAMINHO DE SANTIAGO
A peregrinação caracteriza-se por uma viagem que é realizada por devoção a um local sagrado, contendo três elementos fundamentais: o peregrino, o local sagrado e o caminho que o leva até esse local. Porém, é relevante salientar que os motivos que levam os indivíduos realizarem a peregrinação são bastante diversos e não se restringem as questões religiosas, as atuais motivações contemporâneas são a espiritualidade e busca de transcendência.
A Jornada do Herói é um conceito desenvolvido por Campbell (2007) para descrever um padrão narrativo comum em mitos e histórias de diversas culturas ao redor do mundo. Este padrão, também conhecido como Monomito, consiste em uma série de etapas que o herói deve passar para completar sua jornada e alcançar a transformação pessoal.
Existem alguns elementos essenciais que compõem a narrativa da “Jornada do Herói”. O primeiro é a chamada à aventura, quando o herói recebe o chamado para iniciar sua jornada. Em seguida, ele passa por uma série de testes e provações, enfrentando inimigos e superando obstáculos. No ápice da sua história, o herói enfrenta seu maior desafio e alcança a vitória. Por fim, ele retorna ao seu mundo normal transformado pela experiência, com a sabedoria acumulada durante sua jornada (Campbell, 2007). Esta trajetória é a mesma desenvolvida pelos peregrinos que realizam o Caminho de Santiago de Compostela.
Campbell (2007) apresenta a ideia central de que os mitos são metáforas simbólicas que refletem as experiências e desafios fundamentais da condição humana. Ele examina mitos de diversas culturas e tradições, desde a mitologia grega até as histórias dos povos indígenas, encontrando padrões comuns que revelam a unidade subjacente da experiência humana. Nos apresenta a relação entre mitos e religiões, enfatizando que, embora os símbolos religiosos estejam ancorados nas tradições mitológicas, eles têm um significado mais profundo e espiritual.
Os mitos evoluem e se adaptam ao contexto cultural e histórico, respondendo às necessidades e desafios de cada sociedade específica ao longo do tempo.
Campbell (2009), aborda o complexo conceito de divindade interna, destacando a ideia de que cada indivíduo pode encontrar uma conexão com o divino dentro de si mesmo, em vez de buscar fora, expõe uma discussão sobre os mitos de criação e destruição em várias culturas, mostrando como eles ajudam a explicar as origens do mundo e os ciclos de vida e morte, além de examinar o papel do artista, do poeta e do contador de histórias como criadores e preservadores dos mitos. Podemos encontrar estas conexões no desejo do peregrino em busca de sua essência interior (divindade ou self), vencer os obstáculos do caminho, ouvir a contação de história nos vilarejos pelos anciãos que tentam manter a historicidade, os mitos e lendas do caminho ocorridos durante séculos.
Na “Jornada do Herói Mitológico” (Campbell, 2009) há um roteiro com etapas vividas pelo protagonista com narrativas diversas, onde existe um eixo central que as liga. Assim, todas narrativas, sejam mitológicas, de contos, epopeias, fábulas, contos de fadas, narrativas bíblicas, possuem as mesmas fases no desenrolar do seu enredo. Por estas etapas o peregrino irá inscrever sua epopeia única, viver por dias imerso numa jornada interior, numa trilha universal e ao mesmo tempo singular, solitário e em grupo, experimentar desafios e descobertas, compreender os significados simbólicos, vivenciar os rituais pelo caminho, e finalmente construir sua própria narrativa subjetiva da experiência.
A perspectiva psicanalítica corrobora para compreendermos as crenças religiosas através do estudo do inconsciente humano. Ela nos mostra como a religião influencia nossa identidade individual, como os símbolos religiosos estão conectados ao nosso inconsciente e como os rituais religiosos expressam nossos desejos e medos mais profundos. A fé desempenha um papel importante na busca por significado e propósito na vida, enquanto as possíveis interseções entre a psicanálise e as práticas religiosas podem ser exploradas no tratamento de problemas emocionais. Já a espiritualidade está relacionada à busca por um sentido maior na vida, conexão com algo além do material e desenvolvimento pessoal, independentemente de uma afiliação religiosa. Também, nos ajuda a compreender como fatores culturais, históricos e individuais influenciam nossa adesão a determinadas religiões.
Para Jung (2002), o inconsciente coletivo é um conceito desenvolvido que vai além do nosso inconsciente individual, existe um nível mais profundo e universal, compartilhado por toda a humanidade. Esse inconsciente coletivo é composto por padrões arquetípicos, símbolos e imagens que influenciam nossa forma de pensar, sentir e agir.
Jung (2002) faz a distinção entre o inconsciente pessoal que é representado pelos sentimentos e ideias reprimidas, desenvolvidas durante a vida de um indivíduo. Por outro lado, o inconsciente coletivo não se desenvolve individualmente, ele é herdado. É um conjunto de sentimentos, pensamentos e lembranças compartilhadas por toda a humanidade. O inconsciente coletivo é um reservatório de imagens latentes, chamadas de arquétipos ou imagens primordiais, que cada pessoa herda de seus ancestrais. A pessoa não se lembra das imagens de forma consciente, porém, herda uma predisposição para reagir ao mundo da forma que seus ancestrais faziam. Sendo assim, a teoria estabelece que o ser humano nasce com muitas predisposições para pensar, entender e agir de certas formas. Podemos então afirmar, que os conteúdos do inconsciente coletivo são estimuladores do comportamento pessoal que cada ser humano carrega em si desde o dia de seu nascimento.
Jung (2002), explica que os arquétipos estão presentes neste nível da psique. Existe um arquétipo para todas as situações que ocorrem em nossa vida. Eles são formas sem conteúdo, que têm a função de registrar todas as percepções e comportamentos que temos diante das experiências vivenciadas. Ou seja, tudo aquilo que o ego não suporta é transferido da consciência para o inconsciente pessoal.
É desta forma que este nível da psique é comparado a um receptor, já ele tem a função de receber todas as atividades psicológicas e todos aqueles conteúdos que não conseguem se harmonizar com o processo de individuação e com o consciente. O inconsciente pessoal na concepção da Psicologia Junguiana desempenha um papel de fundamental importância na produção dos sonhos.
“Não há despertar da consciência sem dor. As pessoas farão de tudo, chegando aos limites do absurdo para evitar enfrentar a própria alma. Ninguém se torna iluminado por imaginar figuras de luz, mas sim por tornar consciente a escuridão”. (Jung, 2002, p.101)
Portanto, é o sujeito que se identifica com o local de síntese, a partir de suas aproximações e afastamentos, escolhas e mediações, ao tentar incorporar suas diferentes experiências na busca constante de seu autoconhecimento, fazendo uniões e junções que aparentemente poderiam ser consideradas as mais disparatadas.
Isso posto, será importante explorar determinadas trajetórias de vida visando a reconstituição e o entendimento desse novo tipo de sincretismo em movimento na sociedade contemporânea (Amaral, 2010).
2.2. O CAMINHO DE SANTIAGO – RITUAIS E LENDAS
Peregrinar é sobretudo buscar, movido pelo desejo de fazer realidade plena a existência humana. Neste sentido, ao que tudo indica a vivência é única e intransferível a cada peregrino.
O peregrino na jornada jacobina deverá cumprir uma sequência de rituais. O autor Kueli (2023) conceitua o ritual como um conjunto de práticas consagradas por tradições, costumes ou normas, que devem ser observadas de forma invariável em determinadas cerimônias. Também é uma cerimônia através da qual se atribuem virtudes ou poderes inerentes à maneira de agir, aos gestos, às fórmulas e aos símbolos usados, suscetíveis de produzirem determinados efeitos ou resultados. O ritual é um processo continuado de atividades organizadas cuja prática está relacionada a ritos, que envolvem cultos, doutrinas e seitas, encontrados não só na vida religiosa, mas em todas as esferas culturais.
O ritual também está associado às práticas religiosas ou místicas, criadas em torno da ideia de se estabelecer uma “relação entre os seres humanos e um ou vários seres sobrenaturais”. Uma série de doutrinas sobre os deveres e obrigações recíprocas entre a divindade e a humanidade, uma série de normas e rituais fazem parte das inúmeras religiões, com o objetivo de buscar uma interação dinâmica entre seus seguidores. No sentido figurado ritual é uma rotina, aquilo que habitualmente se pratica, é uma etiqueta, uma regra, um estilo usado no trato entre as pessoas.
Os principais rituais que o peregrino deverá realizar pelo Caminho de Santiago de Compostela são: 1) Passar pelo portal simboliza o início da peregrinação pelo Caminho Francês, partindo de Saint-Jean-Pied-de-Port, além disso, pedir por uma benção na Igreja de Notre Dame. Depois, beber água direto da fonte ao lado da igreja simbolizando a partida da jornada – início do marco zero do caminho. 2) Assistir à missa na Igreja de Roncesvalles. Receber a bênção para a peregrinação que está por vir. 3) Circundar a Igreja de Santa Maria de Eunate. O ritual consiste em dar três voltas no sentido anti-horário no caminho na parte gramada do lado externo da Igreja, e depois mais três voltas na parte de piso de pedras. O viajante deverá entrar na igreja para agradecer pelas coisas boas da vida e pela oportunidade de estar ali. 4) Empilhar pedras ao longo do caminho. Diz a lenda que começou este ritual como uma forma de sinalizar o caminho para outros peregrinos. 5) Deixar uma cruz feita de galho na cerca. Fazer cruzes com gravetos e deixar pendurada em grades ou alambrados de arame ao longo do caminho. Simboliza uma homenagem para pessoas que já morreram, além de marcar sua passagem por aquele lugar. 6) Beber vinho da fonte. Tomar o vinho direto da fonte de Irachetem simboliza um brinde à felicidade e um alívio ao viajante. A Bodega Irachetem, fundada em 1891, fica perto do monastério na localidade de Ayegui. Esta construção foi o primeiro hospital para peregrinos do Caminho de Santiago. A fonte foi construída em 1991 e funciona 12 horas por dia. 7) Deixar uma pedra na Cruz de Ferro. O ritual exige que o peregrino leve uma (ou mais) pedra desde sua casa, deixando-a aos pés da Cruz de Ferro. Esta ação simboliza que o viajante abandonará o que há de negativo da sua vida, além de se livrar de maus hábitos, pecados e mágoas. 8) Bater a cabeça no mestre Mateo. Ao passar pelo Pórtico da Glória na Catedral de Santiago, o peregrino deverá bater com sua cabeça três vezes na estátua. Simboliza a esperança do peregrino em receber um pouco da sabedoria do escultor. 9) Abraçar a estátua de Santiago. O objetivo é agradecer a conclusão do caminho e pedir graças. Ao abraçar a estátua, o viajante deverá dizer: “Recomende-me a Deus, meu Amigo”. A estátua está no altar principal da Catedral de Santiago de Compostela. Também há diversas orações ritualísticas que podem ser feitas ao longo do caminho e que fazem parte da jornada.
A princípio, toda peregrinação implica numa tríplice estrutura: um homem que transita por uma rota; uma meta, escolhida por sua relação com o sagrado; e uma motivação para se encontrar com a realidade misteriosa e invisível. Inseparável da arte de viajar, está o anseio de romper com os hábitos da vida comum, e de se afastar pelo tempo necessário até ver realmente o mundo interno e o mundo ao seu redor (Frey, 1998).
A peregrinação é comumente vista como uma busca universal do eu. Embora a forma da trilha mude de cultura para cultura e das diferentes épocas da história, um elemento permanece o mesmo: a renovação da alma (Cousineau, 1999).
“(…) percebemos que a viagem é uma estrutura socioespacial percorrida pelo corpo lar do viajante. Nesse processo o viajante é um sujeito ativo em diálogo com a alteridade que o circunda e o perpassa, agindo e reagindo aos outros com os quais se depara”. (Fois-Braga, 2017, p. 169)
A filosofia fundamental da peregrinação poderia assim ser resumida: o clímax do ritual é alcançado quando se descobre que “você não é você”, por identificação com o outro e não com o ego. Ou melhor, com uma natureza ainda não definida pelos códigos da cultura e da sociedade. Esta moralidade do constante “se tornar” como valor está sempre presente (Bowie, 2006).
A ideia da metáfora da peregrinação como sendo uma jornada com um propósito, também é recorrente nos discursos dos peregrinos. Além disso, se acredita que a “peregrinação celebra a identidade pessoal” e “conduz à definição de nós mesmos”. Tendo o chamado “efeito milagroso” de apagar pecados (Gomes, 2017).
A lendária hospitalidade espanhola e a reconhecida consideração conferidas aos peregrinos também contribuem para o sentimento de prazer e gratidão que cercam a aventura. Em toda parte, o caminho dos peregrinos é duplo, exterior e interior, contendo o movimento dos pés e da alma no tempo e no espaço.
O sentido do sagrado despertado no caminho revela a realidade que tem o poder de transformar as vidas. Podemos citar, a experiência de divindade, a base do ser, o vazio, o inconsciente, o self, a beleza da natureza e paisagens, o absoluto, a cadência do passo a passo, a dor física, o silêncio, os encontros com outros peregrinos, enfrentar intemperes climáticas, cumprir os rituais etc. Estes encontros libertam as concepções formuladas pelo ego. O despertar de um sentido de sagrado, torna as pessoas conscientes de uma realidade mais profunda e de uma vida mais significativa (Jung, 2002). Ajudando-os, a “varrer vários conceitos, valores e preconceitos”, “despertando novas percepções e obter uma nova consciência existencial”.
O indivíduo transformado em self desrespeita fronteiras sociais e reencontra a sua própria humanidade. O círculo completo, uma mandala, é um símbolo da alma – uma imagem da totalidade – e o fim da jornada é tornar-se novamente um todo (Jung, 2001).
A arte da viagem de peregrinação é a arte de “ver o que é sagrado”. O importante da peregrinação “é aperfeiçoar a si mesmo enfrentando as dificuldades que surgem”. Desta maneira, todas as jornadas são rapsódias sob o mesmo tema da transformação e da descoberta do self (Cousineau, 1999).
Os peregrinos ao retornarem às suas vidas cotidianas, alguns podem apresentar a chamada “síndrome depressiva do caminho”, ao voltarem a realidade vivenciam o término da sua jornada pessoal – um sentimento de luto, contentamento e tristeza; outros despertam o desejo de tomarem uma decisão em sua vida, de agirem, ou de serem menos materialistas, de serem mais generosos com os outros, de trazer sua vida espiritual para a prática do dia a dia. Outros tomam decisões mais radicais, deixar o emprego, mudar de profissão, ou terminar uma relação afetiva etc.
A confiança e a força que vêm durante o percurso levam muitos a quererem levar estes sentimentos para a vida cotidiana. Muitos outros experimentam desapontamentos, contudo, todos se sentem tocados, ninguém sai da jornada jacobina indiferente à experiência vivida.
Nesta perspectiva os elementos de identidade com a peregrinação, frequentemente acionados pelos peregrinos, não são regidos somente pelo particularismo católico, mas sobretudo por valores e práticas centradas no compromisso social com o próximo, numa profissão de fé que é traduzida no ethos peregrino, no ser peregrino.
2.3. A HISTÓRIA E OS SÍMBOLOS DO CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA
O Apóstolo Santiago (Tiago Maior), segundo a tradição, foi em Iria Flaviae, a cidade mais importante da região durante o período romano, situada a cerca de 20 km a sudoeste de Compostela, que o apóstolo pregou pela primeira vez durante a sua estadia de evangelização na Espanha. O apóstolo chegou à região em 34 d.C. vindo da Terra Santa. Depois da sua morte por decapitação, em Jafé, na Judéia, o corpo e a cabeça do apóstolo foram transportados para a Galicia, pelos seus discípulos Teodoro e Atanásio numa barca de pedra, que aportou no local onde é hoje Padrón, então o porto de Iria Flaviae, e que foi amarrada ao antigo altar de pedra que deu o nome à atual vila. Os discípulos depositaram os restos mortais de Santiago num local do monte Libredón, onde hoje se ergue a catedral. Depois de enterrarem o corpo do apóstolo, os dois discípulos ficaram pregando em Iria Flaviae. Num monte não muito distante do centro de Padrón, do outro lado do rio Sar, onde se encontra um outro lugar de culto a Santiago: a pedra em cima da qual, de acordo com a lenda, Santiago celebrou uma missa (Costa, 2015).
Em finais do século VIII difunde-se no noroeste da Península Ibérica a lenda de que Santiago Maior tinha sido enterrado nessas terras. Em 812 ou 813, um eremita chamado Pelágio avistou uma estrela pousada no bosque Libredón (local onde se situa atualmente a Igreja de São Félix de Solovio (San Fiz), sobre uma urna de mármore. O bispo Teodomiro de Iria Flaviae, que se deslocou ao local e ali identificou o achado como sendo o sepulcro de Santiago com o corpo decapitado do apóstolo, nos restos de uma antiga capela e de um antigo cemitério romano. Esta suposta descoberta coincide com a chegada ao reino asturiano de árabes fugidos das zonas dominadas pelos muçulmanos, que procuravam um local onde pudessem praticar as suas crenças religiosas cristãs (Costa, 2015).
A figura de Santiago está intimamente ligada à “Reconquista”, por isso foi transformado em padroeiro da Espanha. Sendo uma das representações mais comuns na Espanha do apóstolo é a de Santiago Mata-mouros, que representa a sua aparição milagrosa como combatente montado num cavalo branco na batalha de Clavijo, supostamente travada em 844, na qual Ramiro I das Astúrias, teria sido cercado por um grande exército muçulmano na sequência de se ter recusado a pagar tributo, conseguiu vencer os infiéis com a ajuda milagrosa de Santiago. A batalha de Clavijo, por muitos considerada uma lenda, é frequentemente apontada como uma das batalhas decisivas do início da reconquista cristã da Península Ibérica (Costa, 2015).
Os estudos histórico-arqueológicos levados a cabo no século XX na Catedral de Santiago revelaram que desde as épocas galaico-romanas, Compostela era um lugar importante, onde eram sepultados altos dignitários civis ou religiosos, muito antes de 813. Isto pode corroborar com a opinião de diversos estudiosos de que foi Prisciliano, patriarca da igreja galega no século IV, e não Santiago, que foi enterrado no local. Prisciliano foi decapitado em Treveris, Alemanha, em 385, mas o seu corpo teria sido trazido para o norte da Península. Outros estudiosos propõem que Prisciliano teria sido enterrado perto de Astorga, outros estudiosos defendem o local de Os Mártires, em San Miguel de Valga (Costa, 2015). Segundo outra tradição, os restos mortais de Santiago Maior estão na Basílica Saint-Sernin, em Toulouse, para onde teriam sido levadas por Carlos Magno, vindas da Galicia durante uma campanha contra os Sarracenos.
O rei Afonso II das Astúrias (r. 791–842) teria também sido o primeiro peregrino de Santiago da história quando se deslocou ao local com a sua corte. Afonso II, o Casto mandou também construir uma igreja no local onde, segundo a lenda, repousam os restos do apóstolo Santiago, onde estabeleceu uma comunidade religiosa permanente. Com o passar dos anos, a Catedral de Santiago de Compostela se converteu num dos principais centros de peregrinação da cristandade e deu origem ao Caminho de Santiago, uma via pela qual se expandiram na Península Ibérica os novos estilos arquitetônicos que triunfaram na Europa.
O Caminho estendeu-se por toda a Europa cristã e o número de peregrinos aumentou consideravelmente graças aos contatos culturais entre as nações europeias, tendo o recorde de visitações no ano de 2023, segundo dados estatísticos do Centro de Acolhimento ao Peregrino da Catedral de Santiago de Compostela, em 2024.
Fig. 1 – Santiago de Compostela, Catedral de Santiago de Compostela, Galicia.

Fonte: Arquivo pessoal, 2015.
O Caminho de Santiago de Compostela é um percurso marcado por histórias milenares e por tradições que têm sido preservadas ao longo dos tempos. Assim, são imensos os símbolos que povoam a jornada jacobina, cujo significado nem sempre é compreendido por aqueles que a trilham.
O símbolo é qualquer coisa que veicule uma concepção: pode ser uma palavra, um som, um gesto, uma obra de arte, uma notação matemática, cores etc. Os símbolos comunicam ideias, conectam os seres com o sagrado, unem pessoas em suas religiões e cultura numa mesma identidade. Existem diversos tipos de símbolos cada um com seus significados (Eliade, 1998).
Numa primeira e rápida definição, um símbolo se torna religioso porque faz parte da liturgia ou da celebração de determinado grupo. Os ritos e atos de cultos constituem o principal lugar de exercício e vivência dos símbolos dentro da religião. Os símbolos estão no cerne da identidade social e cultural. Podem surgir da natureza ou ser criados pelos homens, podem ser animados ou inanimados, e podem assumir formas diferentes, desde imagens a rituais e histórias (Kuile, 2023).
O símbolo é um elemento representativo (realidade visível) que está em lugar de algo (realidade invisível), podendo ser um objeto ou ideia. O símbolo é um elemento essencial no processo de comunicação, encontrando-se difundido pelo cotidiano e pelas mais variadas vertentes do saber humano (Kuile, 2023). Embora existam símbolos que são reconhecidos internacionalmente, outros só são compreendidos dentro de um determinado grupo ou contexto religioso, por exemplo, intensificando a relação com o transcendente (Jung, 2001). Deste modo, entendemos por símbolo sagrado uma imagem visual que representa uma ideia, um indicador de uma verdade universal do inconsciente coletivo, como descrito por Jung.
No entanto, esclarece Jung (2001) se faz necessário levar em consideração o fato de que qualquer objeto ou mesmo pessoa – podem ser um símbolo religioso – ser utilizada ou fazer parte de uma celebração não lhe confere o adjetivo de religioso. A simples presença no local ou mesmo que faça parte do espaço sagrado, isso não significa necessariamente que aquele objeto seja considerado um objeto sagrado ou um símbolo religioso. Uma das formas que pode contribuir para que um objeto natural se transforme ou seja compreendido como símbolo, se deve à experiência religiosa que o fiel ou o grupo religioso vivenciou com este objeto.
Nesse sentido, o símbolo religioso é uma manifestação ou sinal da crença, expressa uma fé. É uma representação visual do sagrado. Para se tornar um símbolo religioso, faz-se necessário que haja uma motivação a partir de uma crença religiosa. Isso significa, por exemplo, que uma vela acesa em uma casa representa apenas um objeto utilizado para clarear o ambiente, mas se essa mesma vela estiver acesa em um contexto de celebração, culto ou ritual religioso, mesmo que seja na casa, rua ou no templo, ela passa a ter outro significado visto que a motivação que conduziu a vela àquele status é uma motivação religiosa, pertencente à crença ou à fé. Portanto, a pessoa que faz uso do símbolo deve ter a intenção de usá-lo como símbolo religioso. Desta forma, o símbolo perde sua interpretação natural, direta, passando a significar outra coisa. Neste caso, o símbolo adota um sentido transcendente, deixando de lado o sentido literal e comum do material utilizado (Gomes, 2020).
O símbolo também pode ter caráter religioso simplesmente porque a comunidade religiosa a qual está ligado assim o reconhece. A comunidade confere esse caráter e o reconhece como elemento que tem sentido e significado com relação à experiência religiosa daquele grupo. Além disso, o símbolo passa a ser objeto de veneração, adoração, proteção, adquirindo muitas vezes poderes mágicos e sobrenaturais. Existe nele uma verdade transcendental (Gomes, 2017).
Os símbolos têm valor porque dão significados que vão além do seu valor natural, indica algo que está fora dele. São sinais visíveis de uma teia de significação invisível. Adquirem um valor religioso porque estão ligados a significados que dão sentido à vida, como a felicidade, a morte e o próprio sentido da existência. O poder simbólico é um poder de construção da realidade (Teixeira, 2024).
O símbolo religioso traz consigo significados conferidos e elaborados historicamente e somente tem um significado porque o recebeu dentro de uma cultura historicamente localizada, ou seja, o símbolo não carrega nenhuma força ou poder misterioso que lhe seja intrínseco. Isso significa que ao ser transportado para outra cultura que o desconhece, ele pode adquirir outro significado. No entanto, o símbolo religioso pode induzir uma prática visto que traz à memória a ação do grupo que o venera e que o reconhece (Teixeira, 2024).
Jung (2001), postula que o significado religioso do símbolo é o atribuído pelo grupo. O símbolo religioso pode adquirir novos significados ou ser ressignificado de acordo com o andamento histórico. Por exemplo, na sociedade capitalista atual, o simbolismo do Natal cristão tomou a forma de consumismo, perdendo o sentido original da celebração católica do nascimento de Jesus. Existe também uma forma intencional de mudar o significado de determinado símbolo quando se quer deturpar ou rejeitar determinado grupo religioso ou determinada cultura. Nesse caso, as simbologias culturais ou religiosas são apresentadas de forma pejorativa ou maléfica.
2.4. OS PRINCIPAIS SÍMBOLOS DO CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA
A SETA AMARELA
A seta amarela, apesar da sua história recente (pois foi idealizada em 1984 pelo sacerdote Elías Valiña) é hoje um dos símbolos mais internacionais do Caminho de Santiago. Durante o século XVII o número de peregrinos começou a cair drasticamente e então as estradas do caminho foram sendo abandonadas.
Elías Valiña Sampedro (Sarria, 1929-1989), conhecido como “O cura do Cebreiro”, foi um dos mais importantes conservadores e promotores do Caminho de Santiago. A relação de Elías Valiña com o itinerário jacobeu é extensa e admirável. Licenciado em Direito Canônico pela Universidade Pontifícia de Comillas e doutorado pela Universidade Pontifícia de Salamanca, nos anos 1961 e 1962 redigiu a tese “O Caminho de Santiago – Estudo histórico-jurídico”. Em 1984, empreendeu a sinalização do Caminho de Santiago, pintando a mão as setas amarelas no chão e em pontos estratégicos, da França a Compostela. O itinerário galego, empreendeu vários trabalhos de limpeza, recuperação de etapas perdidas, numeração quilométrica etc. Hoje o seu trabalho de sinalização é considerado como a delimitação mais segura das etapas originais do itinerário jacobeu. Além disso, promoveu a restauração da povoação do “O Cebreiro”, que concluiu em 1971 com a inauguração do Museu Etnográfico.
Os seus esforços hercúleos fizeram com que fosse nomeado por unanimidade comissário do Caminho de Santiago durante o “I Encontro Xacobeo”, realizado em Compostela em 1985. Nas suas últimas vontades pediu à família que se encarregasse de que não se perdesse o uso da seta amarela no Caminho, pedido que assim cumprem os seus descendentes, com a ajuda das Associações de Amigos do Caminho de Santiago.
Fig. 2 – Setas amarelas, Espanha.


Fonte: Arquivo pessoal, 2015.
A CONCHA DE VIEIRA
Juntamente com as setas amarelas, a histórica vieira ou concha, que os peregrinos traziam como prêmio de regresso a casa. Ambas simbolizam hoje o itinerário. A vieira ou concha, que podemos ver esculpida numa grande quantidade de igrejas ou monumentos, no chão das estradas é atualmente representada, junto à seta amarela, em todas as etapas do Caminho.
A vieira já aparece citada, como símbolo jacobeu, no próprio Códice Calixto, no século XII. A concha deste precioso molusco que é pescado nas costas da Galicia muito rapidamente se tornou símbolo do caminho. Na sua origem, era um prêmio por se ter concluído com sucesso a peregrinação e sua única prova, pois a sua venda era proibida em outros locais exceto em Santiago.
Assim foi como todo um bairro a norte da cidade acabou por ser denominado de “Os Concheiros”, situado na entrada do Caminho Francês. Nele se estabeleceu o epicentro que vendia as conchas, tanto naturais como manufaturadas.
A vieira é um dos principais símbolos do Caminho de Santiago. Porém, a sua origem remonta aos tempos anteriores à descoberta do túmulo de Santiago. Antes de existirem os Caminhos de Santiago, já era tradição peregrinar até o Cabo de Finisterra, para ver o “fim da terra”. Os peregrinos traziam então a vieira, um marisco típico da região, como prova de terem concluído a peregrinação. Quando o Caminho de Santiago começou a ficar popular, a vieira se tornou no símbolo oficial e só podia ser adquirida no Cabo de Finisterra. Porém, como muitos peregrinos chegavam à catedral já doentes ou muito cansados, a venda das vieiras passou a ser permitida na cidade Santiago de Compostela. Mais tarde, a venda se expandiu por todo o caminho.
Há ainda uma lenda onde se conta que a barca em que vinha Santiago se perdeu numa tempestade, tendo atracado em Iria Flaviae e estava repleta de vieiras.
Existem outras versões lendárias sobre a concha de vieira. Em uma das versões contam que os discípulos de São Tiago resolveram levar seu corpo até o primeiro lugar onde ele pregou e para isso se dirigiram a atual Espanha. No meio desta viagem o navio que levava o corpo de São Tiago se deparou com uma violenta tempestade e então o corpo do santo caiu no mar. Seus discípulos ficaram decepcionados e deram o corpo de seu mestre como perdido. Porém, depois de algum tempo o corpo foi encontrado na costa coberto por conchas de vieiras.
Numa segunda versão, os discípulos de São Tiago teriam mandado o corpo sozinho em um navio. Na costa da Espanha estava ocorrendo um casamento, e quando o noivo avistou aquele navio navegando sozinho ele resolveu ir ver de perto. Então, pegou seu cavalo e foram até a costa. Mas ao chegarem na costa se depararam com uma tempestade e o noivo e seu cavalo caíram no mar. De uma forma misteriosa, o noivo e seu cavalo emergiram do mar vivos e cobertos por conchas de vieira.
Uma versão mais metafórica diz que os sulcos radiantes da vieira representam as múltiplas rotas jacobeias que, apesar de se iniciarem em pontos distintos, convergem num ponto comum, a Catedral de Santiago de Compostela. Ou seja, todos os caminhos levam a Santiago de Compostela. Por mais que existam muitos caminhos, o que importa é o percurso, o ponto final é apenas uma consequência da jornada escolhida. A concha de viera, aponta que cada um tem seu próprio caminho e todo o percurso importa.
Fig. 3 – Concha de vieira, Espanha.

Fonte: Arquivo pessoal, 2015.
A CRUZ DE SANTIAGO
A cruz de Santiago é outro símbolo do Caminho de Santiago de Compostela. Ela é uma cruz vermelha que simula uma flor-de-lis em forma de espada. Existem várias histórias sobre esta cruz, inclusive algumas referências aos cavaleiros templários.
Conta a lenda que ela tenha sido originária das cruzadas, pois os cavaleiros carregavam cruzes com fundo pontiagudo para fincá-las ao solo. Outra possível origem data do século XII da Ordem de Santiago, uma ordem religiosa que foi fundada em 1170 e recebeu o nome do Apóstolo Santiago por ser padroeiro da Espanha. Esta ordem possuía dois objetivos: proteger os peregrinos ao longo do Caminho de Santiago e expulsar os mouros da Península Ibérica. Reza a lenda que durante esta batalha Santiago apareceu e intercedeu a favor dos cristãos. A flor-de-lis é um símbolo da Idade Média e representa a honra sem macha dos cavaleiros, já para as religiosas ela representa a honra irrepreensível do apóstolo Tiago. A espada representa o caráter e o modo como Santiago foi martirizado, decapitado por uma espada. O vermelho do símbolo possui dois significados: simboliza a fé em Cristo martirizado na cruz e o sangue do Apóstolo Santiago derramado em defesa da fé. A cruz de Santiago possui grande simbolismo na história do caminho, por isso até hoje é um dos principais símbolos desta peregrinação.
Fig. 4 – Cruz de Santiago

Fonte: Caminho de Santiago. Disponível: www.caminhodesanatigo/gal/pt, 2024.
VESTIMENTA DO PEREGRINO
O sombreiro do peregrino medieval, era importante para proteger do sol e chuva, tinha uma aba larga que ao final do caminho se colocava uma viera como significado do término da jornada jacobina. Atualmente foi substituído por bonés e chapéus.
A capa era utilizada para proteção das intemperes climáticas, como vento, chuva e baixas temperaturas nos Pirineus. Com o passar dos anos, utilizam-se capas de chuvas e roupas especiais de proteção.
O alforge era de couro decorado com conchas de vieira, foi substituído pela mochila. É um dos pertences mais pessoais no caminho e um símbolo, pois todos os peregrinos possuem a sua. A ideia principal da mochila é o símbolo de desapego, do minimalismo, de carregar somente o essencial. O desapego que a mochila representa deve ser levado para a vida toda.
A origem do calçado do peregrino eram sandálias franciscanas, com o passar do tempo se usou botas, e atualmente utilizam diversos tipos de calçados que tenham características para caminhar em solo pedregoso e escorregadio. É considerado um símbolo do desapego e de minimalismo, mostrando que apenas um par de sapato é capaz de nos levar para onde precisamos ir.
O cajado, os primeiros peregrinos utilizavam para auxiliar nos diferentes solos e nos difíceis percursos do Caminho de Santiago de Compostela. Além disso também servia de defesa contra-ataques de animais. Os cajados eram feitos de galhos de avelaneiras ou de castanheiros, árvores muito encontradas na Europa, principalmente em Portugal e na Espanha. Atualmente muitos peregrinos continuam utilizando o cajado, mas atualmente existem variações modernas que são os bastões de caminhada. Mas o cajado tem um simbolismo a parte, ele representa uma perna a mais, que dá estabilidade e suporte para o cansaço do viajante. O cajado é visto como a fé na Santíssima Trindade que ampara e encoraja todos os dias da vida.
A cabaça tem origem antiga, já era usada antes da Idade Média. A cabaça tem origem controvérsia, mas alguns creem que ela tenha sido originária da África e que então foi para a Europa e América. A cabaça era usada pelos peregrinos na idade média para carregar água e vinho durante o percurso do caminho. A cabaça do peregrino é atribuída à solidariedade, típica do Caminho de Santiago, se acredita que era dessa forma que os peregrinos se ajudavam, dando água ou vinho os peregrinos que assim necessitavam. Hoje a cabaça foi substituída por outros diversos recipientes que os peregrinos utilizam para carregar sua água, que vão desde simples garrafas até sacos de hidratação. Mas ainda é possível ver um peregrino carregando a cabaça como símbolo da tradição do caminho.
Fig. 5 – Vestimenta do peregrino.


Fonte: Caminho de Santiago. Disponível: www.caminhodesanatigo/gal/pt, 2024.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As religiões do mundo têm sido moldadas e influenciadas pelo inconsciente coletivo ao longo da história. Através da expressão simbólica e ritualística, as religiões buscam conectar os indivíduos com algo maior do que eles mesmos. Essas expressões religiosas são impulsionadas pelos arquétipos presentes no inconsciente coletivo, como o herói, o sábio e o divino.
É importante considerarmos também a questão da crise real ou aparente dos sistemas, instituições e agências tradicionais produtoras de sentido, não tanto a partir de uma análise do que está agora acontecendo nelas, mas sim, através de uma reflexão a respeito do que está ocorrendo no campo das reciprocidades sociais e simbólicas onde se articulam (Cousineau, 1999).
Esta situação complexa contemporânea tem indicado a emergência de uma nova modalidade de religiosidade, uma maneira dos indivíduos se religarem com a vida, com a história e, fundamentalmente, consigo mesmo. Uma perspectiva cuja “eficácia” está na produção de novos sentidos, pertinência, novas direções de mudança e de valores básicos da vida social.
Tendo essas questões como fundo, precisamos compreender a jornada jacobina como “experimentalismo espiritual” ou da “errância religiosa”, sendo atualmente considerada uma das novas formas da existência espiritual e religiosa na sociedade contemporânea, que a experimentação sendo a matriz da chamada “cultura da Nova Era”, face aos modelos morais e religiosos da modernidade (Teixeira, 2018).
O Caminho de Santiago pode ser considerado uma jornada iniciática, é repleto de rituais, simbologias, lendas que costumam ser conhecidos por todos os peregrinos que ousam embarcar nesta aventura física, psicológica, espiritual ou por turismo, e queiram ter uma experiência mais profunda, inclusive por meio do conhecimento de seus mistérios, mitos, segredos e história.
Os rituais, lendas e símbolos do Caminho de Santiago, em última instância, representam padrões de comportamento associados ao papel do peregrino como a Jornada do Herói, descrita por Campbell (2009), em sua busca espiritual, transcendência, com o reconhecimento do solo sagrado a ser percorrido e com a ligação entre peregrinos de todos os tempos e lugares.
Enfim, talvez faça parte do “espírito da nossa época” repensar o individual e o coletivo, o sagrado e o profano, os símbolos e os mitos, a religião e a magia, as dimensões objetivas e subjetivas da vida social, em novas bases.
REFERÊNCIAS:
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Anexos de imagens:
Fig. 1 – Santiago de Compostela, Catedral de Santiago de Compostela, Galicia. Arquivo pessoal, 2015.
Fig. 2 – Setas amarelas, Espanha. Arquivo pessoal, 2015.
Fig. 3 – Conchas de vieira, Espanha. Arquivo pessoal, 2015.
Fig. 4 – Cruz de Santiago. Caminho de Santiago. Disponível: www.caminhodesanatigo/gal/pt. Acesso em: 4 de outubro, 2024.
Fig. 5 – Vestimenta do peregrino. Caminho de Santiago. Disponível: www.caminhodesanatigo/gal/pt. Acesso em: 4 de outubro, 2024.
[1]Psicóloga Clínica e Escolar pela Universidade UNISANTOS, Pós-Graduada em Psicopedagogia pela Universidade UNISANTOS, Psicanalista Psicodinâmica Contemporânea pela PUCRS, Terapeuta Cognitiva Comportamental e proprietária do consultório particular Instituto Inclusão Brasil em São Vicente-SP. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4036950234432661. E-mail: marinaalmeida@institutoinclusaobrasil.com.br
Marina da Silveira Rodrigues Almeida – CRP 06/41029
Psicóloga Clínica, Escolar e Neuropsicóloga, Especialista em pessoas adultas Autistas (TEA), TDAH, Neurotípicos e Neurodiversos.
Psicanalista Psicodinâmica e Terapeuta Cognitiva Comportamental
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