João Gabriel Almeida[1]
O que o corpo autista ensina? Andreíta me trouxe a idéia do corpo neurotípico como um corpo dócil. E talvez isto seja verdade. Por trás de toda crença normativa e da capacidade de conformidade com a norma, existe a docilidade. O selvagem é sempre visto como aquele que se distancia dos que tentam adestrar. E talvez isso seja autismo. Nós somos muito. Muito interesse ou muito silêncio. Muito fechamento ou muita abertura. O que não nos interessa, não fazemos, e o significado é a base de nosso funcionamento, porque ignoramos o que não nos é dito.
O inferno são os outros, disse um vesgo[2]. Para nós, há muita coerência nessa afirmação. Os rótulos nos invadem. Nós somos os que não falamos, os egocêntricos, os que se movimentam de forma estranha, os que fazem movimentos incômodos, os anti-sociais. Mas quem nos ouve em nossas ações? O mundo não nos traz segurança. Muita luz, muito barulho, muita fantasia, muita conversa, muita demanda para nos expor, mas por que querem que falemos? Por que estar em um lugar que nunca pensou em nos convidar a estar?
Nosso corpo nos ensina que tudo deve ser compreendido, construído, criado. Temos que aprender quais partes de nosso corpo podemos mover ou não. O que somos capazes de suportar, que cheiros não nos fazem vomitar, até que ponto somos capazes de olhar para algo. Que parte de nosso corpo nos ajuda a controlar o resto quando perdemos o controle. Como queremos ser tocados, se queremos ser tocados, por quem aceitamos ser amados e se é natural para nós amar. O mundo para nós é um laboratório, com nosso corpo gritando se a experiência funcionou ou não. Não podemos suportar regras que não vibram com nosso corpo e, quando tentamos, entramos em colapso. Somos o lembrete inconveniente de que ser humano não é definido a priori. Um amigo me disse que nós somos o lado invertido do espelho. Mas eu acho que somos algo mais, somos a pedra de realidade do mundo neurotípico. Lembramos que todas as suas certezas são uma invenção, que suas regras não têm um funcionamento essencial. Que alguém possa simplesmente dizer não a eles. Não por rebelião ou malícia, mas simplesmente porque o corpo não responde por suas verdades.
Lembramos aos neurotípicos que há algo sobre sua própria espécie que eles não sabem, que sua maneira de pensar não lhes permite saber. Então, eles decidiram por nós que éramos um quebra-cabeças com uma peça que faltava.
Decidimos que éramos algo mais. Um colorido infinito. E nisso também decidimos outra coisa. Ouvir o que cada um de nós diz que é e aceitar. Não porque somos tolerantes, mas porque estamos ocupados o suficiente por nos descobrir que somos capazes de aceitar que os outros estão na mesma atitude. E porque estamos transitando em nós mesmos que as etiquetas que aceitamos ocupar são máscaras, que podemos transformá-las em máscaras de terror ou de carnaval.
[1] Autista, professor do Instituto de Pensamento e Cultura em América Latina. Licenciado em Letras Português e Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestrado em Humanidades Digitais pela Universidade dos Andes. Formação em Psicanálise pela Escola Brasileira de Psicanálise sessão Santa Catarina. Doutorando em Comunicação pela Universidade Pompeu Fabra. Estudante da pós-graduação em Neurociência, Desenvolvimento Infantil e Aprendizagem da Pontífice Universidade Católica Rio Grande do Sul. Estudante em Pós-doutorado em Metodologia de Investigação Crítica pelo Instituto de Pensamento e Cultura em América Latina. Membro do Grupo de Trabalho de Educação Popular e Pedagogias Críticas do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais – CLACSO.
[2] Referência a Jean Paul Sartre.
A Psicóloga Marina Almeida é especialista em Transtorno do Espectro Autista. Realizo psicoterapia online ou presencial para pessoas típicas e neurodiversas.
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