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Adolescer na contemporaneidade é adolescer sem a ideologia clamada por Cazuza, nos anos oitenta, é adolescer diante de uma crise generalizada da figura paterna, é adolescer com a difícil tarefa de inscrever seu desejo no campo de um Outro cada vez mais falho. Isso implica mudanças na clínica psicanalítica desses jovens.

Música: Ideologia

Compositores: Cazuza e Roberto Frejat -(1988)

Meu partido
É um coração partido
E as ilusões estão todas perdidas
Os meus sonhos foram todos vendidos
Tão barato que eu nem acredito
Eu nem acredito ah
Que aquele garoto que ia mudar o mundo
Mudar o mundo
Frequenta agora as festas do “Grand Monde”

Meus heróis morreram de overdose
Eh, meus inimigos estão no poder
Ideologia
Eu quero uma pra viver
Ideologia
Eu quero uma pra viver

O meu tesão
Agora é risco de vida
Meu sex and drugs não tem nenhum rock ‘n’ roll
Eu vou pagar a conta do analista
Pra nunca mais ter que saber quem eu sou
Saber quem eu sou
Pois aquele garoto que ia mudar o mundo
Mudar o mundo
Agora assiste a tudo em cima do muro, em cima do muro

Tornam-se cada vez mais comuns adolescentes que mantêm uma relação “autista” diante de seus aparelhos eletrônicos, ou que buscam um gozo que supostamente prescinda do outro, como na toxicomania, ou ainda uma recusa absoluta de comer, como nos casos de anorexia, ou nas crises profundas relativas à identidade e identidade de gênero.

Cabe à psicanálise se reinventar diante desses casos e fazer o que Freud sempre fez muito bem: aprender com os sintomas de sua época para deles elaborar sua prática e teoria, fazendo coincidir pesquisa e tratamento. É o convite e o desafio que os adolescentes de hoje nos encaminham.

Armando Ferrari, em seu livro Adolescência: um Segundo Desafio, nos diz que a mente se origina do corpo, o corpo e a mente interagem constantemente e um não sobreviveria sem o outro.

O conceito metapsicológico de Objeto Originário Concreto (OOC) é o termo utilizado para definir um conjunto de funções sensoriais, metabólicas etc. que estão ligadas e interagem com as funções mentais. O desenvolvimento desse conjunto de funções e seu registro ocorre na mente, local de suas representações psíquicas e corporais.

O conceito de eclipse do objeto (OOC) proporciona uma nova forma de funcionamento mais benéfica à sobrevivência do indivíduo. A ideia é que as representações registram essas angústias iniciais, originais, e auxiliam o corpo a lidar com elas. Assim, o papel do corpo físico está ligado à recomposição da dualidade ontológica corpo-mente.

O autor busca mostrar as emoções como elementos de ligação na construção do pensamento e expressões de integração da organização mente-corpo. É manifestação direta do perfil dinâmico da pessoa e elemento constitutivo primário de seu sentido de identidade.

Ferrari, verifica a distinção entre uma relação comum e a relação analítica, definindo sua especificidade e trazendo a questão da proposição analítica. Traz um novo olhar sobre a adolescência, como um segundo momento crucial onde o corpo, agora adolescente e desconhecido, solicita outra forma, diferente das teorias infantis utilizadas até então, para dar conta dessas experiências novas.

Apresenta alguns termos para explicar melhor a dinâmica do homem, tais como “no lugar de complexo de Édipo sugere a noção de “constelação edípica”, assinalando o aspecto dinâmico e múltiplo da formação da personalidade e da escolha do gênero. A formulação de Ferrari, também envolve modificações na maneira como ele concebe o ego e a situação edipiana (constelação edipiana), especialmente à luz do que ele considera uma feminilidade e masculinidade inatas em ambos os sexos, bem como a maneira pela qual ele enquadra ideias sobre saúde e doença. 

Ele observa que essa noção é a herdeira da preocupação de Freud em encontrar o fundamento orgânico da mente no corpo em que está enraizada e na ideia das pulsões como expressão de funções psíquicas emergentes do corpo, enquanto o instinto é o representante psíquico do estímulo originário de dentro do organismo. As unidades não são tão corporais ou psíquicas quanto definem a conexão entre os dois reinos. Ele sugere que essa distinção se confundiu com a tradução tendenciosa de “Trieb” como “instinto” e, mais tarde, como “emoção”, com as conotações de fenômenos mentais destacadas do físico; além disso, a postura relacional do objeto, particularmente como promulgada por Klein, sugeria que tais instintos só podiam ser relacionados à criança e tornar-se a mente projetada no seio e depois reintrojetada. 

O relacionamento da criança com seu corpo é, portanto, mediado pelo seio no modelo de Klein, em vez de imediato e direto. Assim, enquanto Freud sempre vinculou diretamente o desenvolvimento psicossexual do bebê à emergência do desejo físico decorrente das zonas erógenas, Klein vinculou as primeiras fantasias (fantasia inconsciente inata) à relação do bebê com o seio materno, que agora se torna o primeiro objeto do bebê e a ênfase é colocada nesse objeto e não no assunto da percepção. Terapeuticamente, isso exige que ele também seja colocado na transferência. 

Bion, se afastou desse modelo com sua ênfase no proto-mental no qual físico e mental permanecem indiferenciados, de modo que a angústia dele como fonte também pode ser expressa; e em sua ideia de elementos beta (sensações e afetos) que são cronologicamente anteriores aos elementos alfa e que podem ser empregados para expressão onde elementos alfa não existem. O autor se preocupa amplamente com a relação entre a mente e seu corpo, o chamado ‘eixo vertical’, e isso com o mundo externo que ele chama de “eixo horizontal”. A relação entre corpo e mente é alcançada por meio de uma ‘rede de contatos’ (em oposição à barreira de contato de Bion) e a evolução dos ‘registros da linguagem’ fora dos padrões da experiência corporal.  Essa é uma das várias implicações clínicas do modelo de Ferrari

Ferrari, propõe um modelo bipartido de mente que surge do corpo (em oposição ao modelo tripartido – ego, id, superego) pode ser expresso nos termos de Bion como aquele em que os elementos beta contêm em si a capacidade de se tornar elementos alfa, enquanto a função alfa surge do beta.

Propõe um tempo não apenas natural, objetivo, absoluto, cronológico, mas, sobretudo o tempo relativo, circular, subjetivo, mítico.

Considerações:

Será necessário ainda entender a dinâmica do mundo contemporâneo destacando o declínio da figura paterna e as transformações das exigências superegóicas como aspectos que dificultam ainda mais a experiência de subjetivação que ocorre na adolescência. Pois, se a função paterna, enquanto representante da lei e organizador das normas, ajudava o adolescente a encontrar alguma resposta às perguntas lançadas pela puberdade (ainda que algumas dessas respostas buscassem contrariar ou atacar o pai), atualmente essas respostas contam cada vez menos com a ajuda do pai, o que explica o aumento de sintomas que denunciam a dor de uma separação do Outro, como resposta vem a aderência a toxicomania e patologias da adição, ao transbordamento da dor sem nome, levando ao suicídio como um grito de desespero de não ser capaz pensar, simbolizar seu sofrimento, outros jovens ficam paralisados na depressão em angustias profundas de desalento inomináveis de desamparo, num vazio.

Ambos os aspectos devem ser tratados com bastante cautela, tanto para não supervalorizarmos a adolescência, aproximando-a, por exemplo, da delinquência, tanto para não cairmos em uma nostalgia, acreditando que, em outras épocas, a adolescência era muito mais tranquila. Não podemos, na psicanálise, tratar esses assuntos com juízos de valores. Não é o caso de julgar se nossa época é pior ou melhor do que as outras, nem se o adolescente é mais ou menos aborrecedor que uma criança ou um adulto. À psicanálise, cabe apenas perceber as especificidades tanto do momento histórico quanto do momento constitucional do sujeito para, a partir delas, pensar o seu trabalho clínico dentro e/ou fora dos consultórios.

Freud falou tanto de infância, puberdade e vida adulta quanto de como a guerra, a religião, a arte e outros acontecimentos de sua época impactavam o psiquismo humano. Entender esses dois aspectos, dos tempos de constituição do sujeito e dos efeitos da cultura sobre o aparelho psíquico, sem desviar do sujeito do inconsciente, é trabalho fundamental ao psicanalista que deseja compreender as especificidades da adolescência nos dias de hoje.

Freud demonstrou que o inconsciente não pode ser apreendido em termos de idade cronológica. Desde seus estudos sobre o sonho até o final de sua obra, Freud não cansou de comparar o inconsciente com o funcionamento do psiquismo infantil ou dos povos primitivos. Isso demonstra que, mesmo quando Freud fala de uma fase do desenvolvimento humano, qualquer que seja ela, ele não está se referindo a um acontecimento natural com previsão para concluir. Pelo contrário, o que Freud sempre ressaltou foi que uma das principais dificuldades do aparelho psíquico é abandonar um modelo de funcionamento em benefício de outro. Isso indica que sempre há um resto insuperável no psiquismo humano que não passa com o avançar anos. Um resto de infância, sim, mas, por que não dizer também, um resto de adolescência?

Isso faz vacilar o sentido da idade cronológica em psicanálise. Um adulto pode ter os mesmos medos que uma criança e, ao atender um idoso, o psicanalista pode encontrar as mesmas fantasias que o sujeito tinha em sua adolescência. Nesse sentido, o sujeito, tal como apreendido na psicanálise, não tem idades. O sujeito não é nem um corpo que, com o passar dos anos, sofre mutações naturais filogeneticamente programadas nem a representação social que os anos computados em sua carteira de identidade provam. O sujeito trabalhado por Freud está entre a pulsão, que tem fonte corporal, mas não é corpo, e a representação, que provém do campo do Outro, mas que nunca é apreendida por ele totalmente.

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2001) utiliza a metáfora da fluidez, ou liquidez, em sua reflexão sobre a contemporaneidade. Segundo o autor, os líquidos não mantêm a forma com a facilidade dos sólidos, os fluidos não mantêm dimensões fixas e rígidas, sendo constantemente propensos a se movimentar e a mudar. Nessa perspectiva, a modernidade, para o autor, sofreu um processo de liquefação, de derretimento dos sólidos estabelecidos, no que diz respeito ao rompimento com o passado e a tradição. Segundo Silva (2007), a sociedade atual vive tempos nomeados de hiper espetáculo, no qual o fazer não é importante, mas sim ser visto fazendo, a despeito de que esse fazer possa ser um fazer inútil.

Nessa perspectiva, Retondar (2008) assevera que, no campo do consumo, percebe-se uma migração da atividade econômica para um campo de produção de significados e formas simbólicas. Consumir passa a ser considerado, portanto, como um processo de mediação das relações sociais. Todavia, os tempos atuais, marcados pelo imediatismo e pela imagem, são, também, produtores de inegáveis avanços científicos e tecnológicos nos mais diversos campos do saber. O ser humano, contudo, está sujeito às vicissitudes do tempo e é, irremediavelmente, incompleto, como sujeito psíquico. É neste contexto de fragilidade que se estabelece o ideário de uma imagem proposta pela cultura contemporânea na qual o Ter tem prioridade em detrimento do Ser. Esse é o cenário das demandas contemporâneas o qual deverá abarcar o processo de construção da identidade do adolescente. As contínuas transformações socioculturais sofridas pelos adolescentes têm sido objeto de estudo da clínica psicanalítica contemporânea, sendo inegável a constatação dos importantes efeitos dessas transformações no campo intersubjetivo. O processo adolescente abarca transformações e tarefas complexas e dinâmicas, de ordem psíquica e biológica. As mudanças nessa etapa do ciclo vital, inerentes à passagem da vida infantil para a vida adulta, caracterizam-se pela necessidade de um processamento psíquico frente à intensidade das transformações que ocorrem, resultando em vivências singulares de perdas e ganhos. Para acessar um tempo próprio da vida adulta, o jovem terá que elaborar as perdas características de sua experiência infantil. Assim, a temática da redefinição da identidade ocupa um lugar prioritário nessa etapa do desenvolvimento.

Não há um consenso acerca da idade que caracteriza o período da adolescência, uma vez que fatores culturais têm sido amplamente articulados com o desenvolvimento dessa etapa do ciclo vital.

Na proposição de enfatizar a singularidade das idades da vida, a literatura psicanalítica privilegia, mais do que a especificação de uma idade cronológica da adolescência, a compreensão dos constantes movimentos – de avanço e retrocesso, dos conflitos psíquicos que envolvem este processo (Macedo, Azevedo e Castan, 2004). Nesse sentido, a adolescência tem sido constantemente problematizada à luz de suas complexidades, nos mais diversos modelos de compreensão teóricos. Publicações em periódicos nacionais têm crescido continuamente, indicando a ampliação dos estudos e das investigações que contextualizam a adolescência em relação à cultura na qual está inserida, abordando aspectos, tais como depressão, ansiedade, abuso de substâncias, transtorno de conduta, transtornos alimentares, psicoses, maus tratos, violência, “patologias do ato”, alcoolismo, transtornos alimentares, cutting, escarificação,  e outras condutas autodestrutivas que podem culminar com o suicídio, com a fragilidade de recursos psíquicos do sujeito.

Todas essas manifestações no campo psicopatológico representam uma tentativa desesperada de buscar contornos ou de impor limite corpóreo a uma vida sem limites que lhes é oferecida pelo mundo adulto e o social, isto é, uma busca pela simbolização e integração pulsional.

Em face de tais questões, os efeitos dessas características contemporâneas no processo adolescente merecem, por sua relevância no campo da saúde mental, estudos que contribuam para evidenciar fatores que levem à prevenção e cuidado com a saúde psíquica e física dos jovens. Um cenário de excessos se presentifica no contexto contemporâneo; dessa forma, torna-se importante uma reflexão acerca dos efeitos disso em relação às grandes transformações que caracterizam a adolescência. Assim, a clínica psicanalítica torna-se um lugar privilegiado de investigação no que diz respeito à possibilidade de conhecer e estudar a respeito das configurações de padecimento psíquico dos jovens, assim como de proximidade com as configurações de vínculos intersubjetivos na contemporaneidade. Considera-se fundamental o papel do analista como uma possibilidade de o adolescente ser escutado em sua singularidade, podendo-se inaugurar, neste encontro, um espaço que dê sentido a sua dor psíquica, proporcionando-lhe condições de acesso a um destino que não seja o da patologia.

Marina S. R. Almeida

Consultora Ed. Inclusiva, Psicóloga Clínica e Escolar

Neuropsicóloga, Psicopedagoga e Pedagoga Especialista

Licenciada no E-Psi pelo Conselho Federal de Psicologia para atendimento de Psicoterapia on-line

CRP 06/41029

Agendamento para consulta presencial ou consulta de psicoterapia on-line:

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