Esta crônica tem dois defeitos, entre muitos outros: é reativa (não se intitula impunemente alguém de “louco”, ou “fora do normal”) e auto-centrada em demasia. Se o autor não se apaga, importa que os defeitos confesse…
Agostinho da Silva passou grande parte da sua vida no exílio, por não caber no estreito espaço da “normalidade” imposta numa pátria mergulhada nos tempos sombrios de ditadura. No Brasil que o acolheu, leccionou, ajudou a fundar universidades, escreveu muitos dos seus livros. Numa das suas obras, fala-nos de um Francisco de Assis, que também não foi um ser “normal” para a sua época, pois semeava a palavra, mostrando a todos como era possível traduzir em atos os preceitos, como se podia infundir vida nova no que a pouco e pouco se fora transformando em seco ritual.
Quando estou a escassos dias de, mais uma vez, atravessar o mar, para contemplar prodígios, vem a propósito citar o meu mestre Agostinho. Naquela que foi a sua pátria de adoção, irei partilhar as horas com educadores que não desistem de mostrar ser possível, de muitos modos, “infundir vida nova” em escolas que somente cumprem secos rituais desprovidos de sentido. Porém, desta vez, defronto-me com um problema. Perdoai este registo, muito auto-centrado, mas terei de confessar a minha preocupação: terei de deitar discurso num seminário onde se fará a avaliação de um projeto, um dos que poderei incluir no rol dos que vão tentando “infundir vida nova” nas escolas.
Quando não consigo escapar de falar sem que me façam perguntas, ao cabo de dois ou três minutos do monólogo, a dúvida assalta-me, instala-se. As palavras saem hesitantes, sem convicção. Como poderei saber se o que eu estou dizendo chega a todos? Sinto-me inseguro, pois fico sem saber se algum dos escutadores estará interessado no que escuta.
Por passar décadas a desenvolver a arte da escutatória, fiz a desaprendizagem da oratória. Por fazer a economia da palavra numa subordinação ao dar respostas a imprevisíveis perguntas e ao provocar pistas de descoberta, desenvolvi incompetências várias. E o resultado está à vista…
Porque não sei dar resposta a perguntas que não consigo adivinhar, peço aos que me vão ouvir que verbalizem dúvidas, interrogações, que me libertem da angústia de não saber se estarei sendo útil. E todo o encontro se constrói numa dialogia vagabundeante e num tom coloquial que nos conduz por imprevisíveis caminhos. Mas não há métodos perfeitos. Os vícios que muitos professores contraem no passivo copiar de acetatos e slides, dá azo a inusitadas e embaraçosas situações, como a que passo a relatar.
Fiz a exortação habitual. Esperei a primeira pergunta. E ela veio. Tão objectiva e específica, que eu não sabia como responder.
Peço perdão, mas não sei dar a resposta. Poderemos passar à segunda pergunta?
Mas demorava a sair. O auditório ficara mudo de perplexidade. Para amenizar, eu disse, prazenteiro: haverá alguém que saiba dar resposta a todas as perguntas?…
A perplexidade cedeu lugar a alguns sorrisos irônicos. Em alguns rostos, adivinhava pensamentos malévolos… Até que alguém interveio, para quebrar o gelo: Isso não é normal, professor. As pessoas esperam uma resposta normal…
Uma “resposta normal”? Não sei o que seja. Sei que existe uma auréola de infalibilidade a rodear certos palestrantes. Mas essa “normalidade” não se aplica no meu caso.
Há muitos anos, fui a uma escola, para uma conversa com professores. Instalaram os palestrantes numa sala de espera. À entrada, tinha um dístico com a seguinte inscrição: “sala de aula normal”. Eu perguntei se não haveria uma sala de aula “anormal”, onde eu me pudesse recolher e preparar a palestra. Ninguém achou graça. A minha pergunta foi ignorada e eu fui convidado a entrar para a “sala de aula normal”. Esbocei um sorriso amarelado, para ajudar a descontrair. Mas ainda ouvi, de passagem: É louco!
Há duas semanas, a pedido de um grupo de professores, fui visitar uma escola da minha região. À entrada da sala onde iríamos reunir, lá estava o dístico: “sala de aula normal”. Na minha qualidade de amigo crítico, não arrisquei dizer piadas “fora do normal”…
Perante o descalabro que vivem as escolas “normais”, tudo o que se faça de “anormal” só pode significar mudar para melhor. Sinto-me como peixe na água, quando partilho as horas com professores “fora do normal”, que não esquecem a canção que o que o rei do baião cantava: lá no meu sertão, pró caboclo ler, tem que aprender um outro abc”. São professores que buscam um abc que contrarie a insistência na “normal” transmissão de conteúdos desligada da compreensão dos saberes. Que arriscam receber o epíteto de “loucos”. Que fazem lembrar o “louco” Freinet, na sua escola do interior da França de há quase um século, perseguido por comunistas e fascistas “normais”.
No vaivém entre as margens do largo oceano – que cruzo como quem vai cerzindo pedaços do velho e do novo mundo – redescubro a sabedoria dos “não-normais”. Num mundo normalizador da loucura, admiro a coragem de quem se expõe e faz aquilo em que acredita. Sinto-me irmanado com os educadores que, nas duas margens do Atlântico, afirmam ser “possível traduzir em actos os preceitos” as práticas e teorias que andam dispersas, e que insistem na benigna loucura de transformar escolas reprodutoras de exclusão em escolas geradoras de sucesso. Por isso, aí vou eu, passar um dia numa escola em mudança. Mas. Desta vez, vou ter de fazer uma palestra. O dia aproxima-se, e eu sem encontrar solução para o problema de ter de deitar discurso.
Há dias em que apetece ser… “normal”.
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Marina S. R. Almeida
Consultora Ed. Inclusiva, Psicóloga Clínica e Escolar
Neuropsicóloga, Psicopedagoga e Pedagoga Especialista
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